Mesmo sendo importante como libelo pela não subalternidade negra, espetáculo perde oportunidade de nos revelar mais sobre Maria Firmina dos Reis
Nem sempre ter boa intenção compensa. Este é o caso de uma peça teatral que, apostando no protagonismo feminino e dando visibilidade a uma personagem real da história do nosso país, com duas mulheres pretas em destaque, não resulta com a potência que poderia ter. “Maria Firmina dos Reis: uma voz além do tempo”, do Núcleo Atmosfera – NUA, da cidade de São Luís, no Maranhão, se propõe a fazer uma releitura sobre a vida e a obra da escritora e professora maranhense Maria Firmina dos Reis, misturada a outras vozes de pessoas pretas, principalmente da atriz solista em cena, Júlia Martins. A direção é de Leônidas Portella.
A grande maioria das pessoas nem conhece a figura feminina que dá título à obra, mas ela foi a primeira mulher no Brasil – e há quem diga na América Latina – a escrever um romance, “Úrsula”, com perfil abolicionista em plena época de escravidão instituída no Brasil, e que demorou a ser publicado em 1859 (antes da Lei Áurea). No espetáculo em questão, muito mais do que fartos dados biográficos – talvez pela carência de detalhes –, são as suas concepções de vida e relações com os outros que um jogo de narrativas se faz, ora como se ela própria, em gravação em off ou transfigurada, explicitasse suas opiniões; ora com a atriz narrando sobre ela ou dirigindo-se ao público para uma conversa sobre si mesma, direta, sem rodeios.
Há também um trecho em que uma possível escrava relata os horrores do tráfico nos navios negreiros. E assim, nesse teatro épico (narrativo), abre-se espaço até mesmo para a participação da plateia, com luz branca direcionada, quando perguntas como “Tu sabe a tua escravidão?” são lançadas. Noutro momento o público vira aluno da educadora em questão. Sim, porque Maria Firmina dos Reis, em pleno século XIX, chegou a ser aprovada num concurso público para tornar-se professora primária, além de ter sido pioneira na fundação de uma escola gratuita e mista para meninas e meninos estudarem juntos, algo que também lhe criou problemas de censura.
A grande questão é que as cenas “interativas” são apenas eco, sem maior abertura ou estímulo para uma real confrontação ou depoimentos que pudessem desvelar o peso daquelas problemáticas. “Negro não é animal para se andar montado nele” ou “Só a educação é capaz de combater o racismo” são algumas das obviedades – desculpem o termo, para os tempos atuais – que a mestra pede para a plateia dizer repetidamente. E por todo o tempo da montagem o legado da escritora/educadora é pautado por frases de efeito, talvez, como sugere o título do espetáculo, na intenção de que o seu discurso possa ecoar do passado ao presente, com reverberação no futuro.
Crédito das fotos: Guilherme Lostt
Penso que vem daí o sentido dos espectadores serem encarados como alunos desse entre tempos, escolha, ao meu ver, bem pouco assertiva. É que diante de uma personagem tão promissora, cujos dados nos chegam espaçadamente – sabe-se que vivia em condição humilde, não casou, mas criou filhos adotivos; dedicou-se à escrita e à educação, mesmo enfrentando questões raciais e de gênero no país que foi o último a abolir a escravidão (persistindo até hoje de outras maneiras, infelizmente); tinha impressões melancólicas sobre a vida e morreu cega, aos 95 anos, em 1917 –, as reflexões e vozes que se agrupam à sua figura não parecem ter força suficiente para uma coesão dramática melhor estruturada.
E o referencial identitário na árdua e penosa trajetória de Maria Firmina dos Reis – uma mulher que assumiu amar as próprias lágrimas que vertia constantemente – parece clamar por maior espaço. Toda a concepção de cena é pautada pelo corpo da atriz Júlia Martins em destaque – numa composição que vai do sofrimento lancinante, com direito a urros de dor, à extrema suavidade, incluindo movimentações dançadas de ancestralidade afro (até um belo trecho sonoro do Tambor de Crioula entra em certo momento), com ela transitando por entre biombos manipuláveis e forrados com toalhas de crochê. Teria tido Maria Firmina alguma relação com essa prática artesanal?
Crédito das fotos: Guilherme Lostt
A dramaturgia, marcada por subjetividades, parece ter sido construída a partir de experimentos em sala de ensaio. É feita de retalhos, fragmentos, lances de memória, um roteiro que, ao meu ver, não empolga, não surpreende, tudo tão previsível quanto a exposição de palavras no figurino de malha ou no uso daquele manto hierático. Não há uma situação que decole, algo que emocione de fato. Falta progressão, clímax, uma força maior às escolhas dramatúrgicas e direcionais, tendo apenas na luz, de Renato Guterres, uma moldura cênica a se fazer com maior beleza, graças a um efeito fosforescente ou pela transição das cores que deixam os tecidos de crochê ganharem tonalidades variadas.
No fundo, a sequência de “lições” pelos casos relatados, ou mesmo nas poesias que aqui e acolá vêm rechear a cena, transparece uma ausência de maior teatralidade, porque, no caso, discurso apenas não basta. Claro que é sempre importante bater na tecla de que “a violência mata mais gente negra neste Brasil”, mas se tais constatações pudessem revelar o contexto sócio-histórico em que foram propagadas antecipadamente pela personagem-título, neta e filha de escravas alforriadas que galgou espaço como cidadã e intelectual na sociedade maranhense do século XIX, acredito que teríamos dimensão muito mais forte da sua projeção política no correr do tempo. E a grandiosidade da memória desta mulher preta, no lugar de frases de efeito militante ou dados numéricos, deixa de reverberar como merecia.
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