O teatro também é danado para botar a gente para pensar
O que faz um artista de teatro? Interpreta personagens. Isso: cria tipos! É possível que cante, dance e, com sorte, arranhe algum instrumento. A depender da formação, pode ter habilidades circenses e, quem sabe, até cuspir fogo. Há, ainda, aqueles que escrevem os próprios textos que apresentam. Há, também, aqueles que organizam suas próprias cenas, mas estes são mais raros. É por aí. Disso, não passa. Passa, sim. Pelo menos, nos seus dois últimos trabalhos, o Grupo Magiluth tem chamado atenção para uma dimensão do ofício do artista de teatro, tão antiga quanto a própria linguagem, apesar de muito pouco realçada: o estudo.
Depois de “Estudo N°1 – Morte e Vida”, montagem de 2022 provocada pelo conhecido auto de Natal pernambucano de João Cabral de Melo Neto, “Estudo N°2 – Miró”, estreado há pouco mais de um ano, mantém o diálogo da companhia com a poesia local. Dessa vez, a interlocução é com outro João, João Flávio Cordeiro da Silva, conhecido como Miró da Muribeca. Muribeca, diga-se, era o lugar de Miró na cidade do Recife, um conjunto habitacional que reunia 70 prédios, cada um com 32 apartamentos, totalizando 2.240 moradias, que sobreviveu de 1982 a 2017, quando veio ao chão.
O evidente percurso de pesquisa, de investigação, desloca as noções mais regulares de criação e de fruição para outra dimensão. Os estudos do Magiluth são, por excelência, experiências de aprendizagem, para os atores e para seus públicos. “Estudo N°2 – Miró”, por exemplo, tem algo central para a organização da poética criada pelo grupo em seus 20 anos de história. É um espetáculo, uma palestra-performance, sobre a conceituação e a especificidade da composição das personagens. No Magiluth, faz tempo, Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral e Pedro Wagner entram em cena como Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral e Pedro Wagner. São seis atores ou seis personagens? São seis pessoas. Agora, sete, contando com Miró.
Com direção e dramaturgia coletiva, “Estudo N°2 – Miró” destaca esse limite tão tênue que separa o intérprete do tipo, real ou ficcional, dado a ver ao público pelo artista de teatro. O Magiluth teve o privilégio de conhecer Miró, de conviver, de trocar com o poeta. Na plateia alargada da companhia, pensando que o Magiluth fala para além do Recife, esse conhecimento tátil de Miró é mais acidental. Pelo Magiluth, conhecemos um Miró criado a partir do Miró que eles conviveram. É um Miró tão verdadeiro e genial como o original. Para apresentar Miró, e, não, representar Miró, o Magiluth cria um Miró particular. O Miró do Magiluth é um tanto daquele da Muribeca misturado à potência de cena e de vida de Erivaldo Oliveira, ilustre representante de uma família tão devota quanto subversiva por nomes começados pela letra E.
Na aula que o Magiluth constrói para problematizar a relação do teatro com as personagens que o ocupam, há uma gordurinha pop, uma citação divertida ao cinema e à televisão, mas o eixo de interesse recai sobre a criação teatral. Há dois fragmentos muito instigantes que reforçam essa orientação. Num dado momento, Parma, Erivaldo e Giordano procuram definir o que é um protagonista, um coadjuvante e um antagonista. É quando sugerem uma abordagem policial violenta, com o perdão do pleonasmo. Um menino pobre e preto é parado e acaba levando um tapa na cara. O protagonista apanha, o antagonista bate e o coadjuvante observa. E a plateia, o que faz? Nada. Testemunha aquilo tudo passivamente, faz no teatro o que faz na vida. Esse tipo de provocação só é possível no teatro. Ali, afinal, estamos vivos e presenciamos uma situação.
Mais adiante, quando, enfim, Miró deixa de ser uma referência literária para se fazer personagem de carne e osso, a fusão do poeta com Erivaldo Oliveira é algo de extraordinário, de maravilhoso. Embora forte e bruto, esse processo, esse movimento, exibido ao público numa transmissão em vídeo, é feito fora de cena, no camarim. O Miró do Magiluth nasce na intimidade mais profunda do teatro, onde os artistas ainda são eles mesmos. O Miró do Magiluth não é o Miró da Muribeca. Jamais seria. O Miró do Magiluth é Erivaldo Oliveira dando conta de uma camada outra de composição. Erivaldo continua sendo Erivaldo, como Parmera e Giordano seguem sendo Parmera e Giordano, mas assume uma carapuça nova, que não é dele nem de Miró, mas que só é possível pelo encontro do ator com o poeta.
“Estudo N°2 – Miró” deixa um tanto de aprendizado sobre a arte teatral, um tanto de aprendizado sobre a poesia de Miró da Muribeca e um muito de aprendizado sobre a vida e a criação, quase impossíveis, de tipos e artes como a de Miró numa cidade como Recife, também uma personagem da montagem. Poético, no sentido de delicado e afetuoso, ao tempo que político, “Estudo N°2 – Miró” é um tributo a Miró da Muribeca e um tributo a uma percepção do teatro como espaço e meio de circulação de conhecimento. Para além de comungar o ver e o ser visto, o teatro pode e deve ser esse lugar que desafia e renova ideias. Assim como a janela do ônibus, Miró, o teatro também é danado para botar a gente para pensar. A gente é que esquece disso. Ainda bem que o Magiluth não deixou passar batido.
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