O refinamento estético de uma trupe do sertão pernambucano
Grata surpresa foi conhecer na tarde de quarta (22), como parte da programação para crianças do Palco Giratório 2024, em Recife, o grupo Tropa do Balacobaco, que surgiu em 2007 na cidade de Arcoverde, encravada no sertão de Pernambuco, com menos de 80 mil habitantes. Eles participaram da programação com o espetáculo ‘Mundo – Em Busca do Coração da Terra’, com texto, encenação e direção de arte de Ney Mendes. E que direção de arte! Que apuro estético, quanto refinamento – uma montagem que faz frente a tudo o que se apresenta nos maiores centros de produção teatral do restante do País. Um espetáculo de causar muito orgulho para o povo pernambucano.
Os figurinos são arrebatadores, do começo ao fim. Há uma profusão de personagens e todos estão muito bem caracterizados, vestidos, maquiados. Dos pés à cabeça. De uma enorme coroa de flores na personagem que representa a morte aos calçados coloridos e floridos dos dois atrapalhados irmãos portugueses, que aliás têm cores trocadas: um com calça vermelha e colete verde, o outro com calça verde e colete vermelho. Um mero bastão encapado vira adereço luxuoso. Perucas de samambaias são divertidas. As meias máscaras são impressionantes. Os bonecos são sofisticados.
Enfim, tudo impecável. Pedro Gilberto assina os figurinos, confeccionados por Sandra Lira. Visagismo também é dele, com a parceria do diretor. Se fosse um festival competitivo, com certeza melhor figurino e melhor direção de arte já seriam da Tropa. Até agora ninguém foi melhor do eles nesses quesitos.
No mais, ‘Mundo’ é um competente desfile de lendas regionais, misturado com jornada de herói, um pouco de rimas de cordel e a celebração de ritmos populares (direção musical e composições de Eduardo Espinhara). “Olha o caroço do mundo rodando e girando e virando sabugo de tanto embolar.” Com esse refrão na canção inicial, que se repete em outros momentos, caímos de amores pela trupe/tropa e de interesse pela trama, muito bem contada, cheia de graça, aventura e suspense.
Em essência, é uma peça sobre o mundo à procura de um novo coração. Nada mais do que isso. Quer coisa mais linda do que essa metáfora para falar de hoje, de nós, do planeta adoentado, da falta de afeto? Um mundo em busca de coração. Mundo é o personagem Raimundo, um moço que a morte (Dona Caetana) espertamente recruta para retirar o coração da pequena Abayomi de dentro da barriga de uma cobra.
Acontece que Abayomi é a responsável por fazer o dia virar noite. Desde que a cobra engoliu seu coração, a menina “se encolheu como se quisesse entrar em si” (olha que frase linda) e, assim, não há mais noite naquele lugar. Felizmente, tudo o que Mundo mais quer é vivenciar de novo a escuridão enfeitada pelo brilho da Lua e o brilho das estrelas. Por isso, ele aceita a jornada proposta pela morte. “Caminha, Mundo!”, ordena outra canção que se intercala entre as cenas – um refrão que diz muito mais do que está dito em sua primeira camada. Que beleza de trabalho.
O velho Velhinho no alto da árvore, a fogosa Dona Mocinha (que virou leitoa como castigo por ter desrespeitado sua criadagem), a hilária gralha azul, o cardume de peixes dourados, a desbocada serpente Caninana – a galeria de personagens é inesquecível, cada um mais atraente e interessante do que o outro. Belíssimas composições do elenco, formado por Danielly Lima, Everson Melo, Jéssica Mendes, Paulo Almeida, Renata Cordeiro, Thiago José e Yan Vinícius.
A trama é perfeita para levantar valores éticos e construtivos, sem virar uma pregação chata e moralista. Coragem, amizade, compromisso, honestidade, generosidade – tudo isso está na peça e na atitude das personagens. Na forma de bom teatro fabular, não de catequese paternalista e verticalizada. Que maravilha ter a morte passeando pela peça toda – um espetáculo feito para crianças, sem medo de enfrentar temas tidos como tabus. Nem ela, a implacável Caetana com seu capuz preto e seu bisaco funéreo a tiracolo, acredita no sacrifício final que o Mundo faz para trazer a noite de volta. ‘Mundo’, a peça, emociona na trama e na sua execução. Uma brasilidade posta em cena com talento e verdade, sem folclorizações nem estereótipos redutores.
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