Poesia cênica e metáforas inteligentes a serviço da coragem de arriscar
Perguntei, certa vez, ao saudoso dramaturgo e diretor Vladimir Capella (1951-2015) como se faz para escrever boa dramaturgia para crianças. Ele me respondeu assim, exatamente assim: é preciso ter talento. Como contestar uma resposta dessas, tão taxativa, tão definitiva?
No exercício da crítica teatral, há momentos em que dá vontade de também resumir tudo o que se viu no palco apenas assim: o espetáculo é bom porque as pessoas envolvidas nele têm talento – e ponto final. Ou o contrário: não é bom, porque falta talento. Só isso. No frigir dos ovos, não é isso mesmo que explica tudo, conforme nos ensinou Capella? Qual cartilha, que receita, que fórmula e quais regras resumem tão bem a felicidade de conseguir fazer um bom espetáculo? Ou se tem ou não se tem essa característica imponderável, inexplicável, indecifrável chamada talento. Pronto.
‘Vento Forte para Água e Sabão’ é demonstração de talento do começo ao fim. O espetáculo de 2016 da Cia. Fiandeiros de Teatro, fundada há 21 anos em Recife, usa uma estrutura dramatúrgica muito comum no teatro para crianças: personagens fabulares, várias canções intercalando as ações, ritmo de jornada em que os protagonistas vão encontrando os coadjuvantes pelo caminho e assim por diante. Mas não tem nada que soe ou pareça antigo no espetáculo, porque foi feito por gente que tem talento, e de forma inteligente, criativa, bem escrita, sem chavões pobres e frases de almanaque, tratando criança com horizontalidade e não com atitude vertical de dedo em riste.
Vento, a peça escrita por Giordano Castro e Amanda Torres e dirigida por André Filho (1961-2023), que muita falta vai fazer neste mundo, trata criança com poesia e metáfora. Isso já faz tudo ficar muito mágico e universal, um texto que pode atravessar os anos, porque poesia boa nunca envelhece. E para fazer poesia cênica e encher o texto de metáforas e imagens poéticas é preciso acreditar na inteligência cognitiva das crianças e ter… talento.
Para começar, ninguém do elenco grita ou faz voz infantilizada só porque é uma peça para crianças. Que incrível quando os encenadores entendem que os intérpretes não precisam abrir os braços a cada frase e afinar a voz – isso se fazia muito antigamente no teatro. E basta um chapéu arredondado transparente para as crianças acreditarem que são todos bolhas de sabão em cena – para que figurinos óbvios e caricatos? Pequenos espelhos nas mãos dos atores já fazem todos acreditarem que estão diante de um lago ou espelho d’água. E um bastão cheio de fitas esvoaçantes já serve para sentirmos uma ventania danada pelo ar. Teatro é isso. Teatro bom é isso. Aposta na imaginação, não na obviedade explícita. Mas, para ter essas sacadas criativas, é preciso ter… talento.
Não se faz mais peça infantil musical com letras que começam com “eu sou o sol”, quando o personagem é o sol, ou “eu sou o tempo”, quando o personagem é o tempo. Isso se fazia antigamente, quando se achava que criança precisava dessas facilidades para compreenderem um espetáculo. As canções de ‘Vento Forte para Água e Sabão’ têm letras poéticas e ritmos sofisticados, melodias de gente grande, gente que tem… talento. Cada canção emociona mais do que a anterior, porque não estão ali só para ilustrar e fazer a plateia bater palminhas, e sim para ajudar a contar a história, empurrando a narrativa para frente.
A ideia do enredo é absolutamente incrível. Surpreende, encanta, nos cativa do começo ao fim, sem chance para que nenhuma criança esperta descubra antes o desfecho. Porque foi pensado com… talento. O fio condutor é a divertida e amorosa amizade entre uma delicada bolha de sabão e um vento vaidoso. Sem precisar de lições explícitas nem de mastigar valores com palavras rasas, a peça é um valioso tesouro sobre ter coragem, enfrentar os medos, querer se aventurar, querer correr riscos. A bolha, ao sair fora do copo de água e sabão, corre o risco de estourar a qualquer momento, mas aceita a jornada de conhecimento e aventura que o vento lhe propõe. Muito mais do que se algum ator tivesse vomitado na plateia frases como “Vamos enfrentar nossos medos, porque a vida é curta”, ou “Coragem é nosso maior tesouro” (frases, aliás, que passam longe deste magnífico espetáculo poético), as crianças aprendem, entendem, digerem cada intenção da fábula, cada emoção contida em cena, sem que diretor e autores tenham de lançar mão de facilidades castradoras. É que eles têm talento para fazer isso, não precisam de muletas antiquadas.
Um espetáculo infantil sobre correr riscos. Que maravilha de ousadia. E que sintomático é isso para o fazer teatral. Quem faz peça sem correr riscos, só se apegando ao já testado e ultrapassado, faz teatro pífio, um desserviço para a formação saudável de nossas crianças. E como ainda existe esse perfil de companhia pelo Brasil afora! A Cia. Fiandeiros corre riscos e instala um frio delicioso na barriga da bolha protagonista, assim como em todos nós da plateia. Isso é bom teatro. O teatro que nos faz sentir frio na barriga, por ser uma aventura com riscos – como, de resto, é a vida.
Uma hilária e inusitada galeria de personagens auxilia na fruição da narrativa, nunca de forma naturalista, sempre com pegada poética e jeitão de fábula. Uma dupla de algodões doces, um trio de sorvetes de casquinha, uma garota que usa o pum como defesa, um menino apertado pra fazer xixi, uma brisa atrevidinha, um casal que adora paçoca e lamber raspa de bolo… O quarteto de capins e raminhos com medo da chuva no jardim é uma das cenas mais criativas e brilhantes que eu já vi no teatro para crianças. Que feliz criação – e execução. O elenco responsável por todo esse…talento é: Tiago Gondim (Vento Arlindo), Daniela Travassos (Bolha Bolonhesa), Geysa Barlavento, Kellia Phayza, Victor Chitunda, Layon Figueiroa, Milena Marques e Ricardo Angeiras.
Há talento também no desenho de luz de João Guilherme de Paula, que inteligentemente muda o clima do palco na hora do primeiro voo do vento com a bolha. E a iluminação da cena final, com todos cantando sentados no palco em formação de casais, é outro grande acerto. Aliás, quanto à luz, há um comentário a se registrar aqui.
Muitos realizadores evitam o blecaute total em peças para crianças, para que não comece uma gritaria incontrolável enquanto os refletores não forem acionados de novo. ‘Vento Forte para Água e Sabão’, na sessão do Palco Giratório 2024, na tarde de sexta (24), começou com um blecaute total, até que os atores se ajeitassem para a primeira cena. (E que primeira cena tão bem pensada! Crianças aprendendo a fazer bolhas de sabão e dando dicas de como praticar o método mais eficaz. Maravilhoso prólogo, de inteligência sagaz. É preciso ter… talento.)
Mas, voltando à luz, o blecaute de fato fez as crianças iniciarem um berreiro até certo ponto previsível. O que quero comentar é o seguinte: nada disso alterou o ritmo da primeira cena, por total e absoluto… talento do elenco. Eles iniciaram a cena nos tons de voz já estabelecidos pelo espetáculo e o que se sucedeu foi de arrepiar. Em menos de dois minutos, para conseguirem ouvir o que se passava em cena, as crianças mergulharam num silêncio total e absoluto. A boa cena trouxe as crianças para o espetáculo. Ninguém mais se lembrava do escuro do blecaute. Fez-seum dos silêncios mais lindos que já vi recentemente no teatro para infâncias. O silêncio de crianças participando da história, sem que nenhum ator tivesse de gritar, ralhar, alterar o combinado. Só com aforça do bom teatro.
O silêncio de uma plateia infantil completamente absorta pelo talento de quem sabe fazer teatro com qualidade. Descanse, André Filho. Sim, você vai fazer falta, mas, pelo que vi, sua criação será eterna, porque o seu talento ficou irremediavelmente entranhado em fiéis fiandeiros, que o transmitirão para os vindouros.
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06/10/2024 @ 11:39
A leitura flui de maneira muito agradável, o que facilita a absorção das informações, mesmo em temas mais densos.