O “segredo preto” de saber contar/cantar suas próprias histórias
Maurício Tizumba é bom de prosa. Não só ele, mas também sua filha, Júlia Tizumba, e o amigo-irmão Sérgio Pererê. Este trio formado por artistas plurais das Minas Gerais – atores, cantores, compositores e instrumentistas – encantou o grande público que foi conferir “Herança”, da Cia. Burlantins, atração do Festival Palco Giratório na sexta-feira 24 de maio de 2024. O espetáculo, apresentado no Teatro do Parque e dirigido pela também mineira Grace Passô, nos revela histórias de identidades pretas a vasculhar ancestralidades, numa experiência que cativa pela extrema maestria dos discursos e de sua condução.
“Nós queremos nossas coisas de volta”, é a frase que ecoa nos primeiros momentos, logo após sabermos que um rei negro do povo Bamum de Camarões, na África, criador de um alfabeto visual próprio, teve o seu território invadido por colonizadores alemães e franceses. Um artefato seu em especial foi roubado: um trono de madeira talhada, forrado com contas de vidro e búzios, composto por figuras que simbolizam a fertilidade. Esse patrimônio expropriado serve de força motriz para a profusão de histórias pessoais que serão contadas, cantadas, dançadas e batucadas como painel da herança cultural afro-brasileira, num ritual de grande comunicação.
Manipulando falas, marcas, danças, músicas e percussão, e tendo ao fundo uma projeção audiovisual – de Renato Pascoal, Desali e dos VJs Bah e Kraken – ora elegantemente coadjuvante (com seus rabiscos de espera cinematográfica), ora de intensa presença (na utilização de fotos de acervo, de grafismos afro, de vídeo real da busca pelo trono no Museu Etnológico de Berlim ou apenas na exposição sensível de chamas de fogo em trecho duro e poético), tudo transpira teatralidades. Até mesmo quando apenas os instrumentos musicais são o destaque, vide o momento da gunga – chocalho tocado e dançado com os pés, que, na tradição do Congado, é conexão com a energia da terra –, a interferência visual se faz presente e raios dinâmicos de luz moldam sombras.
É no sentido mesmo de comunhão, como se fôssemos coro de escuta ativa, que os artistas chegam a descer do palco e, transitando por corredores iluminados pelo ótimo designer de luz Edmar Pinto, nos enredam com suas performances cênico-musicais no sentido mais expandido das palavras. Isso porque as narrativas, que emaranham fatos de parentes (mãe, avó, avô, bisavó, tia ou tio), são constantemente entrecortadas, seja para dialogar literalmente com o violão, piano, flauta ou instrumentos ancestrais como o tama/tambor falante e a mbira, seja para transformar-se em pura música preta, do blues às referências religiosas de matriz africana.
Por vezes, nos relatos, palavras completas ou sílabas apenas em repetição ganham contornos sonoros incríveis, ampliando percepções entrecruzadas. A cena em que o neto Sérgio Pererê discorre sobre a perseguição que sua avó sofreu, e pergunta onde uma cadeira em que ela sentava foi parar, transformando a sua fala-denúncia num grito, choro, vômito, solfejo lamentado é pujante de emoção (seria uma espécie de vissungo, o canto de força da tradição banto no seu aspecto místico-religioso?). E tudo fica em puro estado de suspensão, êxtase mesmo.
Assim, em meio ao relato afetivo de trajetórias de superação – da mãe que enfrenta o poder masculino para que não lhe roubem o que planta ou do tio baterista que, ainda tão jovem, viu o seu sangue se esvair pela Doença de Chagas (belo o traço vermelho sangrento que lhe sai do nariz para invadir a plateia com fitas vermelhas); ou ainda do avô que, mesmo cuidando de porcos e sendo manco, se mantinha elegante frente a uma sociedade que lhe via com galhofa –, o desejo maior de recuperar e compartilhar histórias em diáspora ganha pleno relevo. Minudências íntimas, então, ecoam ampliadas, transformando aqueles sujeitos pretos em sua dimensão mais coletiva, tal qual o trono que foi usurpado e necessita voltar ao seu povo, como herança cultural conjunta transplantada à sua origem.
Portanto, uma simples máquina de costura recuperada pode aflorar memórias e identidades, tal qual a trajetória do ator Grande Otelo, do líder revolucionário Zumbi dos Palmares, do capoeirista Besouro Mangangá ou dos três multiartistas em cena, Júlia e Maurício Tizumba e Sérgio Pererê, com participação em vídeo de Rosa Moreira (irmã de Tizumba). Sensível ao extremo, “Herança”, de memória pessoal, passa a ser coletiva, identitária e de matriz ancestral, pulsando num trabalho performativo que não deixa de ser também uma bela e justa homenagem àquele garoto de oito anos que ganhou show de calouros na TV e não podia mais concorrer por ser tão vencedor, mas também, como violência simbólica, foi parado por uma viatura policial por estar carregando uma TV sua que levaria ao conserto.
Completando 50 anos de carreira artística e 66 anos de vida, o “preto velho” Maurício Tizumba (um dos reverenciados nesta edição do Palco Giratório), junto com seus companheiros de cena, todos com vozes privilegiadas e a utilização de sonoridades para lá de expressivas num cantar, dançar, batucar e contar – como diria outro grande mestre, o professor Zeca Ligiéro –, nos transporta para o legado que todo o povo afro-brasileiro tem de sobra: uma origem nos bons contadores de histórias, as suas próprias, descolonizadas e espiraladas no correr dos tempos, felizmente transmitidas de geração a geração. Não poderia haver melhor partilha de tantos bens preciosos.
Crédito das fotos: Guilherme Lostt.
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