Poesia, música e bolhas de sabão para capturar crianças grandes e pequenas
Se em capitais como São Paulo e Belo Horizonte, como afirmou o crítico Dib Carneiro Neto, há uma profusão de grupos teatrais que preparam shows cênico-musicais a partir das trilhas sonoras das suas peças, o Recife carece de produção nesse sentido. Não que não haja ótimos compositores à frente das canções criadas para espetáculos voltados às infâncias, alguns até lançando suas obras para comercialização junto ao público – até bem pouco tempo atrás, sempre ávido por esse tipo de produto –, mas são poucas as iniciativas que se assumem como shows para crianças de todas as idades. Excetuando aqueles artistas ou conjuntos que já trabalham nesse sentido (como Tio Bruninho, As Fadas Magrinhas, Mini Rock, a dupla Viviana Borchardt e Pochyua Andrade, o Tintim Por Tintim, Carol Levy e o fenômeno Mundo Bita), um breve retrospecto histórico mostra que poucos vindo do teatro se lançam em tal empreitada.
Minha memória me faz lembrar do Palhaço Chocolate em primeiro lugar, que sempre traz canções e personagens de algumas de suas montagens aos shows que realiza. Também recordo dos espetáculos “Cantigas ao Pequeno Príncipe” (1996), que lançou a elogiada trilha sonora em fita cassete; “A Terra dos Meninos Pelados” (2002) e “Vento Forte Para Água e Sabão” (2016), ambos com canções originais registradas em CD. Isso sem contar a trilogia das festas brasileiras de Ronaldo Correia de Brito, Assis Lima e Antônio Madureira, que compuseram “Baile do Menino Deus” (1983), “O Pavão Misterioso” (1985) e “Bandeira de São João” (1987), além de outro sucesso, “Arlequim” (1989), todos gravados em LP e estreados no palco.
Não posso esquecer também do artista Demétrio Rangel, que divulgou o show/disco “Cena de Abril” (2004), reunindo canções suas de espetáculos como “Grande Circo em Presente de Palhaço”, “O Gás da Graça” e “A Terra dos Meninos Pelados”, entre outras de montagens adultas. Ou ainda a peça “O Amor do Galo Pela Galinha d’Água” (2006), que chegou a fazer parte da programação de shows de bairros periféricos no Carnaval do Recife no ano seguinte à sua estreia.
Todo esse preâmbulo é para saudar, já de antemão, um show que compôs a programação do Festival Palco Giratório no sábado 25 de maio de 2024, no Teatro Marco Camarotti: “Cantigas de Fiar”, da Companhia Fiandeiros de Teatro, que surgiu em 2019 como um “projeto do coração” na intenção de celebrar os dez anos de existência do Espaço Fiandeiros, até então resistindo na rua da Matriz, próximo à Praça Maciel Pinheiro. Agora ocupando um antigo cinema na rua da Saudade (sintomático esse nome!), também no centro do Recife, desde 2023 o prédio passou a ser o Espaço Fiandeiros – Teatro André Filho, em homenagem a este grande artista que infelizmente nos deixou no ano passado. “Cantigas de Fiar”, agora, mais do que nunca, reverencia o seu legado.
O show – e não espetáculo teatral – é uma profusão de música e poesia, com o repertório que André criou para diversas peças em que ele assinou composição original e direção musical, como “O Menino do Dedo Verde” (1989), “As Incríveis Aventuras do Barão Langsdorff” (1993) e “Cantigas ao Pequeno Príncipe” (1996), ao lado do seu maior parceiro, o diretor teatral José Manoel Sobrinho, e aquelas que concebeu para sua própria trupe, como dramaturgo, diretor cênico e musical: “Outra Vez, Era Uma Vez…” (2008); “Vento Forte Para Água e Sabão” (2016), aqui com texto de Giordano Castro e Amanda Torres; e “Histórias Por um Fio” (2017). Convocando o público a um tempo de brincar, sem receio de assumir a palavra saudade como carro-chefe de todo o repertório, “Cantigas de Fiar” faz um passeio musical em que pululam muitas palavras-imagens, brincadeiras e jogos de interação, inclusive abordando temas como perda, morte e medos.
O elenco de atores que cantam, como meninos e meninas trelosos, parece que acabou de sair de um sótão onde foram bolinar nos figurinos de carnaval deixados a um canto, efusivamente dispersos e coloridos. Em meio à sucessão de músicas, sem maiores comentários sobre suas origens, há uma interação com a plateia nos improvisos lançados, mas é uma narrativa poética quem conduz os blocos temáticos, marcadamente dolentes em sua maioria. Confesso que até mais da metade da apresentação pensei que as crianças pequenas – e não as grandes, já emotivamente apanhadas – não fossem se envolver com o que viam e ouviam (isso após os comentários iniciais sobre a beleza do cenário infelizmente estático, sem destacar melhor suas personagens: flores, passarinhos, lua, um bumba meu boi e, especialmente, um cavalo-marinho e um grande pássaro azuis), até que a instauração da brincadeira se deu por completa.
Bastou o chamamento para adivinhações e a meninada atendeu de pronto, dialogando com os artistas na sua exposição mímica de objetos para serem descobertos e cantados na sequência. Também preciso destacar a única criação de outro compositor, “O Coelho e o Tempo”, do jovem maestro Samuel Lira, o diretor musical e regente no seu teclado, com a mais lúdica e infantil de todas. Mas foi com a música-tema do espetáculo “Vento Forte Para Água e Sabão” que a farra aconteceu de vez, assim que uma pistola de bolhas de sabão veio fazer a alegria da turminha. A canção graciosa e serelepe sobre o sopro de vida das inúmeras bolhinhas que tomam conta do teatro é, sem dúvida, o momento ideal para um congraçamento coletivo, e ninguém se fez de rogado em invadir o espaço para estourar as pequeninas translúcidas, em meio a correrias, saltos, rodopios e danças.
Além disso, a piada final do “mais um, mais um”, para que todos do elenco possam se sentir “estrelas” e fazer o esperado bis, cai como uma luva para a graça do afetuoso conjunto. E tudo acaba em festa, com direito a confetes e mais bolhinhas de sabão. Reunindo uma turma que solta a voz em melodias e arranjos que agradam pelo coletivo, os fiandeiros desse show são Charly Jadson (também na percussão), Daniela Travassos, Geysa Barlavento, Kellia Phayza, Layon Figueiroa (ainda no trombone), Manuel Carlos, Samuel Lira (tocando teclado e flauta, além da regência e direção musical) e Victor Chitunda (violão e xilofone). Há ainda a participação de duas crianças filhas das atrizes (a menorzinha chorou e não quis saber de brilhar no palco; já a outra parecia estar em casa, tamanha a desenvoltura em ligar o “Não estou nem aí, eu quero é brincar!”. Mas, pelo meu olhar cênico direcional, esta podia ser apenas uma surpresa ou um achado especial da apresentação. Quem sabe numa próxima récita…).
Crédito das fotos: Guilherme Lostt.
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Demétrio Rangel
26/05/2024 @ 18:16
Adorei!!!!(…) Poesia, música e bolhas de sabão para capturar crianças grandes e pequenas. Veio como uma viagem no tempo e principalmente para quem não consegue mais acompanhar a programação como eu. Valeu. Obrigado Leidson Ferraz pela a citação e a grata lembrança. Amei muito o texto. E ainda bem, pois me sinto honrado também pelo Samuel Lira. Que levei ao teatro pegado pela mão, ainda pequeno e hoje rege espetáculos, shows, aulas, etc. Gratidão. Evoé! Viva o teatro, a música e os fazedores de cultura.
www.amzx.art
03/06/2024 @ 08:46
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QR Code Manaus
06/10/2024 @ 11:14
Me fez refletir sobre o assunto, obrigado.
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06/10/2024 @ 12:14
Um conteúdo bastante esclarecedor.