Zenaide Bezerra: um espetáculo para eternizar, “e já não era sem tempo”
Não deve haver dúvida quanto à importância de homenagear, difundir e repetir as histórias de vida e os ensinamentos das mestras e dos mestres em ofícios da arte (nas suas mais diversas expressões) e, mais ainda, em fazer isso enquanto essas pessoas estão vivas, para que possam receber o respeito e reconhecimento pela dimensão de seus trabalhos. É o caso da passista e professora de dança, uma pedagoga em sentido amplo, Zenaide Bezerra. Ela é uma guardiã em movimento da cultura e da dança pernambucanas, desde oito anos de idade, quando começou a dançar com seu pai, Egídio Bezerra, já falecido. Egídio é ele próprio lendário, desde que foi vencedor do concurso de passistas, no ano de 1952, no programa promovido pela Rádio Tamandaré e intitulado “Ao compasso do frevo”, quando recebeu a alcunha de “rei do passo” e acabou ganhando uma passagem para a França, para divulgar o frevo. Mas todo este suposto ‘glamour’ não impediu que a vida do “rei do passo” repetisse o enredo comum a tantos artistas e mestres da chamada cultura popular, em geral, pessoas negras ou mestiças, caboclas/os, periféricas/os e que precisam sobreviver de diversos ofícios, nunca de sua arte. Egídio foi pescador, motorista, mecânico de lanchas no Iate Club, da ‘high society’ recifense.
A menina Zenaide dançava samba de gafieira sobre os pés do pai. Dele herdou o profundo senso de liberdade e uma consciência pedagógica. Se Egídio ensinou as filhas, Zenaide criou um grupo em homenagem ao pai e segue ensinando o que com ele aprendeu: xaxado, coco, samba e, muito em especial, o frevo, pelo qual recebeu a merecida coroa de Rainha do passo. Literalmente na sala de sua casa em uma periferia popular da zona norte do Recife, segue formando passistas, dançarinas/os e preservando, alargando, ampliando o saber no qual foi forjada e ao qual dedica sua vida. Assim, o Festival Palco Giratório traz à cena mais um Patrimônio Vivo da Cultura Pernambucana, apontando para o quanto é preciso diminuir o fosso que separa a produção de arte e cultura tradicionais e o cenário dos grandes festivais e dos palcos na cidade, no estado e no país.
O espetáculo foi criado pela Cia Fazendo Arte, composta pelos integrantes do Projeto Fábrica Fazendo Arte, ou seja, também protagonizada por pessoas negras e mestiças, moradoras de diferentes comunidades e periferias do Recife e região metropolitana; uma companhia nascida de projetos de fomento à arte como linguagem de tradição, cultura, pertencimento e formação. Em cena, é traçado um percurso através dos diversos momentos de vida da mestra, da sua infância até hoje. Assim se homenageia em vida a mulher negra, aguerrida, periférica e mais antiga passista de frevo em atividade, Zenaide Bezerra.
O trabalho tem um prólogo, no qual uma apresentadora, quatro meninas passistas e uma Catirina tentam dar um tom de envolvimento com a plateia, incentivando o riso. Algo que nem se faz efetivamente necessário, pois a força poética da cena inicial, em monólogo performado com grande domínio vocal e técnico/ físico pelo ator Adriano Cabral, instaura com muito mais potência a atmosfera de homenagem e a importância da figura sobre a qual o espetáculo versará.
Há uma escolha técnica de uma dramaturgia que se intercala com um vídeo mais longo de depoimento de Zenaide na sala de sua casa que, por questões de execução, criou uma quebra de ritmo, pois falhou inicialmente e, por isso, foi preciso dar pausa e reiniciar algumas vezes. Além disso, nos pareceu que o vídeo é muito longo, poderia ganhar força se melhor selecionado o trecho de mais impacto das falas de Zenaide e exibido apenas no começo do trabalho, sem tantas idas e vindas. Assim, poderia ser retirada a tela de projeção de trás das/os bailarinas/os/ passistas. Sim, como o vídeo projetado se mantinha todo o tempo no telão, aguardando cada novo trecho que seria exibido (fica a sugestão também de serem retiradas as barras de ferramentas do navegador na projeção, para a imagem do depoimento ficar inteira e limpa), as luzes da projeção atrapalhavam a iluminação do espetáculo, por vezes particularmente acertada e que compunha belas imagens e destacava as partituras de dança. Bem, trata-se de uma percepção nossa e de uma escolha da dramaturgia e da direção do espetáculo, mas em nada diminui a força do que é mostrado em cena, ressaltemos.
É particularmente bonito ver a diversidade de ritmos e danças que a professora Zenaide transmite e desenvolve em suas/ seus alunas/os representada na cena e a presença de jovens, adultas/os e crianças executando as coreografias, respeitando-se a desenvoltura e as peculiaridades de cada uma/um em seus corpos, nos modos de mover e nas idades diversas também. Trata-se de uma professora e passista com mais de setenta anos que segue dançando, ensinando e repetindo que quer dançar até quando puder (em nós ecoa Elza Soares, outra diva negra, que repetia: “eu quero cantar, me deixem cantar” e assim fez até o fim, sabendo-se “a mulher do fim mundo”). A certa altura de sua fala, Zenaide afirma sobre ser reconhecida como patrimônio vivo o “já não era sem tempo” mencionado no título deste texto e, ainda mais contundente é quando ela dá o tom de sua pedagogia, de imenso respeito à individualidade de cada aluna/o (o que endossa a diversidade de corpos dançando neste espetáculo e o fato de ter sido ele criado por um grupo oriundo de um projeto sociocultural), ao dizer: “Eu começo a te incentivar pra ver o que eu tiro de você”.
Na plateia, há que se celebrar, havia muitas crianças em grupos escolares, com professoras e famílias, além de pessoas adultas e senescentes, embora lamentemos que não houvesse uma plateia lotada e mais artistas da dança (sobretudo passistas) assistindo ao espetáculo e reverenciando uma mestra como Zenaide. Devemos ainda destacar o ritmo bonito impresso à dramaturgia, que alternava duetos, solos (uma passista mais jovem representa Zenaide e será ela que, ao final, se encontrará no palco com a homenageada e lhe transmitirá a coroa) e as coreografias coletivas características do frevo, do xaxado, do coco. A iluminação, repetimos, tem momentos de acerto poético no clima e a trilha sonora deve ser destacada, conduzindo o espectador a um passeio que retoma músicas mais tradicionais e versões mais contemporâneas do frevo, por exemplo.
Um ponto alto e privilégio de quem pode estar no teatro do Parque neste 26 de maio de 2024 foi a presença de Zenaide na plateia e, depois, sua subida ao palco, para frevar liberta e desenvolta, recebendo esta justíssima homenagem que se desdobrou na realização de mais um sonho dela: a fundação do Bloco de carnaval Zenaide Bezerra, rainha do passo, cujo estandarte foi apresentado à homenageada e a nós, da plateia, ali mesmo na cena. Depois, nada mais natural quando se ouvem os metais e a orquestra entra ao vivo: o bloco começou seus primeiros passos com as/os artistas descendo do palco e contaminando a plateia em um arrastão de frevo que se desdobrou e ocupou o saguão do teatro do Parque em uma grande festa de carnaval. Evoé!
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x.drex
29/06/2024 @ 09:35
Parabéns pelo ótimo artigo! Foi uma leitura muito enriquecedora.
www.amzx.art
29/06/2024 @ 09:50
Agradeço por compartilhar suas ideias de forma tão generosa. Este post foi muito inspirador.
real digital
29/06/2024 @ 10:54
Parabéns pelo excelente trabalho! Seu blog é sempre uma fonte constante de aprendizado.
Promoção Online
06/10/2024 @ 12:13
Um conteúdo bastante esclarecedor.