Um Zaratustra que esbarra na liberdade coletiva do Tá na Rua
Às vezes, o Recife é uma cidade bem generosa para o teatro. Isso ficou evidente no número excessivo de palmas durante toda a apresentação de “Zaratustra – Uma Transvaloração dos Valores”, atração do Festival Palco Giratório no domingo 26 de maio de 2024, com o aguardado grupo Tá na Rua. Tanta benevolência não foi por menos, afinal, o próprio mestre e diretor Amir Haddad, logo no início do espetáculo, explicou que um ator ou uma atriz, ao abrirem os braços, estão pedindo aplausos. Frente a um elenco que repetiu tal movimento inúmeras vezes, a plateia do Teatro Marco Camarotti seguiu à risca aquele ensinamento. Pura generosidade.
Isso porque, assim como o profeta idealizado por Friedrich Nietzsche não convenceu a quase ninguém com seus discursos sobre a superação do ser humano, penso que a equipe carioca poderia ter se saído melhor ao mergulhar no prólogo da obra “Assim Falou Zaratustra”, a mais famosa do filósofo alemão, inserindo ainda outros trechos do livro. Em quase duas horas de apresentação, a conjuntura – provavelmente necessária – de se assistir Amir, aos 87 anos, lendo falas tão longas e reflexivas, com a ajuda do texto impresso numa estante de pauta, entrecortado por interferências quase jograis dos nove atores que o acompanham, ao meu ver, fez a peça parecer mais espichada do que deveria. A empreitada realmente não era fácil.
O texto nietzschiano traz como personagem central um pensador que, após exilar-se numa montanha e passar dez anos afastado do convívio humano, volta para esclarecer questões sobre a vida e os valores que se mostram impostos a todos nós. Suas críticas dirigem-se especialmente à religião e à moral dos homens, com fundamentos tidos como imutáveis, absolutos e eternos. Zaratustra rechaça essa moral vigente, tentando fazer ver que determinadas concepções nada têm de transcendentes, mas são frutos de avaliações humanas, criadas e ordenadas em algum momento.
Assim, procura derrubar ídolos (a morte de Deus como fato!), inverter e recriar novos valores, abrindo olhos e ouvidos ao mundo verdadeiro, do aqui e do agora, sem ideais metafísicos, sem promessas de outra existência para além da vida terrena, esta sim, precisando ser bem aproveitada, vivida na sua plenitude de liberdade. Para quem conhece minimamente a trajetória de Amir Haddad e do seu grupo Tá na Rua, que surgiu em 1980 como um dos expoentes do teatro de rua no Brasil, sabe do rompimento que ele fez com certos padrões da cena brasileira e do abraçar ao teatro como arte pública, sustentado pela experiência do compartilhamento festivo para todos, sem distinção.
De certa maneira, Zaratustra tem a ver com Amir e Amir pode, sim, ser Zaratustra, ainda que de perfil comedidamente dionisíaco. A peça, então, brinca com os dois amalgamados, mas o trabalho livre, aberto do Tá na Rua, deixou-se amarrar pelo negacionismo crítico de Nietzsche e não se saiu bem nessa. A questão maior é que, para além dos discursos ali proferidos, é o conceito do próprio teatro do grupo que parece estar deslocado àquelas parábolas. As músicas, danças, rodopios e a intensa troca de roupa do elenco – marcas do coletivo – não dão um arcabouço mais verticalizado a tudo aquilo, nem plasticamente nem como teatro vivo, pulsante, que precisaria ser arrebatador, pois esbarra na falta de timing das longas falas proféticas.
O espetáculo é constantemente amortecido pela opção da leitura, parecendo ainda imprecisas as falas da maioria do elenco. O jogo proposto como no futebol, de passar o lance rápido para o outro em sequência, fica a desejar. Aqui e ali o humor é até bem-vindo (a piada transposta na canção “Pense em Mim”, de Leandro & Leonardo, na tentativa de se aceitar Nietzsche, o rompimento, e negar Hegel, a conciliação, é fabulosa), mas tudo esbarra para superar a lentidão, mesmo diante da inegável entrega afetuosa do elenco à montagem. Talvez a ranhura de se ver um teatro que é propositadamente inacabado, com variados tecidos rotos e coloridos, onde os movimentos multiplicam-se constantemente, enfrentando uma literatura em dialética profunda – o texto robusto, quase messiânico –, sufoca as estratégias pensadas e a peça não flui como deveria.
Gestos, cantos, olhares e sorrisos não bastam para avivar a dinâmica necessária, ainda que se busque um “teatro vivo sem cartas marcadas”. No entanto, a rede de proteção na dramaturgia, sinceramente, foi pesada demais. É uma pena que a estética libertária, de espacialidade ampla (as trocas de figurino acontecem, quase todas, ao olhar do público), carnavalizada, afrodescendente até em certo trecho, destoe flagrantemente do discurso verbal, e as potencialidades apontadas não sobrevivam por muito tempo. Ainda assim vale destacar o maior achado poético da encenação, que se deu exatamente pela presença de um artista ali estreando, o menino alagoano Benjamim Eller, de 5 anos, sobrinho de uma das atrizes.
Num espetáculo cujo texto-base reclama que as pessoas vivam aproveitando o viver, sem maiores julgamentos (apesar do estranho vídeo em projeção que mostra uma bronca que Amir deu num de seus atores), as cambalhotas em sequência daquele menino loirinho, desapegado, liberto, são a maior lição do que Zaratustra poderia ter nos oferecido. Afinal, a existência é mesmo um movimento que, para a frente ou para trás, com ou sem apoio na superfície, nos coloca de cabeça para baixo na intenção dos pés sempre voltarem ao chão, à terra firme. Pelo menos em tentativa.
Crédito das fotos: Rasta no Cllick.
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Luiz Felipe Botelho
27/05/2024 @ 12:59
Crítica respeitosa com questionamentos sinceros sobre a apresentação do trabalho de um grande mestre vivo (e presente em cena), liderando a sensível e apaixonada trupe que leva adiante a herança de um grupo referencial do Teatro de Rua no Brasil. Essa apresentação histórica disse muito sobre nós – artistas, plateia, cidadãos – e nossas posturas individuais e coletivas no momento presente. Foi uma récita sobre cujas camadas de entrega e recepção precisaremos refletir, conversar e relembrar muitas vezes.
Claudio Lira
27/05/2024 @ 15:12
Parabéns Leidson pela crítica tão respeitosa apontando questão pertinentes a encenação. Apesar do espetáculo pra mim, ser bastante frágil é inegável a importância de ter Amir e o seu grupo na nossa cidade, um grupo que é referência no teatro de rua no Brasil.
Camila Mendes
29/05/2024 @ 01:24
Concordo muito com teu ponto de vista Leidson. É necessário negritar a importância de Amir e do Tá Na Rua para a história do teatro, mas sem endeusar, para que as críticas e as fragilidades do espetáculo, sejam trazidas como a qualquer outro artista e/ou produto artístico. Há muitas cenas interessantes de fato, pontuo o sapateado, a de Omulu e a versão da música que agitou a plateia. Porém trata-se de um texto muito difícil, e que optou por uma construção cênica, que em minha opinião, não colaborou para que pudéssemos apreciar com mais entusiasmo e atenção. As cenas repetitivas, repletas de rodopios e saltos e mãos, como você apontou, causam em mim um incômodo e um desejo de ver mais aprofundamento em cada pedacinho que me era mostrado. Contudo, sinto que foi importante ter assistido e almejo nas próximas vezes poder mergulhar mais e sair profundamente tocada como tem sido ao longo do festival.
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03/06/2024 @ 08:50
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