Com rigor estético e densidade conceitual, palhaços beckettianos divertem e emocionam
Pense em tudo que precisa funcionar para um espetáculo ser considerado bom. Texto, direção, interpretação, desenho de luz, trilha sonora, cenografia, figurinos… Da companhia recifense 2 em Cena, ‘Enquanto Godot Não Vem’ é bom em tudo isso. Um conjunto harmonioso de estética e dramaturgia, de diversão e pensamento, de alegria e de tristeza, de arte e conceito. O espetáculo teve sua sessão em Recife, na grade de programação do Palco Giratório 2024, na noite chuvosa de segunda-feira (27), no Teatro Capiba. Compareceu um público modesto em quantidade, mas atento e firme na demonstração de amor ao teatro.
Jogo todos os louros no colo de Alexsandro Silva, responsável pela dramaturgia, pela encenação (em parceria com Arnaldo Rodrigues) e pela cenografia (ao lado de Ricardo Vendramini). Mas quero começar dizendo o quanto a luz é marcante, cheia de conceito, cheia de intenção. Raramente críticos – eu, incluso – começam a analisar um espetáculo por sua iluminação, por isso acho justo que eu o faça aqui no caso deste impecável trabalho em ‘Enquanto Godot Não Vem’. Do começo ao fim, há a presença forte da luz na condução do espetáculo e sua narrativa. Focos, detalhes, nuances, cores, intimismo, parcimônia, clima onírico, clima etéreo. Uma beleza de conjunto variado, preenchendo as cenas de acordo com o que cada uma delas precisa. Quem assina e executa todo esse acerto é Beto Trindade. Só para dar um exemplo, destaco o momento do sonho meio sonâmbulo dos três personagens, vestidos no meio da noite com saias de bailarina: a luz nos conta tudo, a luz fala, a luz comanda.
Em seguida, muito justo também é destacar a trilha sonora, tão adequada, tão discreta e eficiente. Que belas escolhas, seja das canções, seja do incidental e do instrumental. Quem assina é Davison Wescley, que também está em cena, como o palhaço Dunga. Ouso dizer: sem a iluminação e sem a trilha, o resultado desta montagem da Cia. 2 em Cena não seria o mesmo. Há uma direção de movimento (Arnaldo Rodrigues), que – tenho certeza – é muito favorecida pela existência dessa trilha eloquente. Os movimentos combinam com o que a gente está ouvindo nos arranjos instrumentais. Muito feliz, por exemplo, é o momento em que os três palhaços (de costas para a plateia) simulam que estão no cinema – a trilha dá o recado à perfeição, nos fazendo acreditar que um filme antigo está sendo exibido numa tela invisível. Que maravilha.
E vejam só quais foram as poucas e boas canções escolhidas: Que incrível ouvir ‘Eu Só Quero um Xodó’ (de Dominguinhos) num contexto tão hilário, com pura palhaçaria. Que glória ouvir ‘Ride, Palhaço’, de Lamartine Babo, um clássico que o público de hoje desconhece. E a trilha também é muito feliz na canção-tema, porque ela ajuda os personagens a contarem o que estão fazendo ali naquele cenário inóspito (palmas também para a cenografia tão fielmente beckettiana assinada pelo diretor e por outro dos palhaços em cena, Ricardo Vendramini, o Cadinho).
A ideia brilhante da dramaturgia de Alexsandro Silva, que adaptou para crianças a peça emblemática do irlandês Samuel Beckett, ‘Esperando Godot’, é que os três palhaços ali estão esperando um quarto palhaço, famoso e consagrado, que os ensinará a arte da palhaçaria. Mas ele nunca chega. É aí que entra a inspirada canção-tema, linda de ouvir, que diz mais ou menos assim: “Quando Godot chegar, Godot vai nos ensinar, Godot virá nos ensinar a pintar a cara pra fazer o povo rir, dar cambalhotas e a vida colorir, botar sapato bem maior que o próprio pé e fazer graça pra Maria e pro seu Zé.” Uma delícia, além de muito emocionante. Canção em peça infantil é para isso. Para acompanhar a inteligência da dramaturgia, em vez de derrubá-la com obviedades e má poesia.
Os três intérpretes demonstram segurança, talento e envolvimento total com as propostas da encenação. São eles os já citados Ricardo Vendramini (Cadinho) e Davison Wescley (Dunga) e Sóstenes Vidal (Dodo). Um trio e tanto. Sem exageros histriônicos, eles nos fazem rir e chorar, com essa história tão humana. O mérito maior da dramaturgia do espetáculo talvez seja mesmo esse: mantém o humor ingênuo e sempre eficaz dos palhaços, e preserva a melancolia niilista do texto de Beckett, a ponto de nos entregar um final doído, profundo, corajoso, desafiando os moldes dos espetáculos de palhaço voltados para o público mirim. Não vou contar a cena, para que você, quando for ver a peça, sinta toda a pungência nela contida. Só digo que são palhaços despindo-se de sua alma, antes de sair do palco. Como? Com a genialidade criativa da encenação.
“Acho que chegamos.” É a primeira frase da adaptação. Que especialista em Beckett será capaz de negar o quanto essas palavras iniciais combinam com as intenções do texto original? Outro exemplo: “E aí? Nada. Nada ainda? Nada.” Isso é puro Beckett, e a Cia. 2 em Cena teve o maravilhoso atrevimento de colocar esses diálogos na boca de palhaços tentando fazer o celular funcionar… “Nada ainda? Nada.” Que coisa mais prazerosa é ver uma adaptação ser fiel e, ao mesmo tempo, contemporânea e descolada da obrigação de ser reverente demais ao clássico. E a dupla de dramaturgos ainda acha espaço para um tributo arrebatador ao saudoso e pioneiro Arrelia (1905-2005), reproduzindo, com off vindo de um rádio de pano (belo adereço cenográfico), a notícia da morte do palhaço paranaense aos 99 anos. De arrepiar.
São três palhaços querendo aprender mais truques, traquinagens e peripécias de sua arte, mas que, ao mesmo tempo, são personagens arquetípicos mantendo a profundidade do original de Beckett: seres humanos à espera de algo que nunca virá e em contato com suas fragilidades, frustrações, seus sonhos, seus fantasmas. A Cia. 2 em Cena consegue tudo isso com louvor. Um brilho conceitual e um rigor estético acima da curva do que se vê nesse gênero de espetáculo. Viva o bom teatro do Recife!
As opiniões expressas nas resenhas publicadas neste blog são de responsabilidade exclusiva dos críticos que as assinam. O Sesc PE não se responsabiliza pelas opiniões, comentários ou avaliações feitas pelo autor, que são independentes e não refletem, necessariamente, a visão de nossa instituição.
x.drex
29/06/2024 @ 09:35
Parabéns pelo ótimo artigo! Foi uma leitura muito enriquecedora.
Link Tracking
06/10/2024 @ 11:52
O texto está muito bem escrito e proporciona uma análise crítica e detalhada do tema.
Serra do Espinhaço
06/10/2024 @ 11:59
Legal ver esse tipo de conteúdo por aqui.