Musical que homenageia Leci Brandão traz o seu legado familiar materno para revelar uma trajetória cheia de licenças poéticas e ancestralidades
Por Leidson Ferraz
Como uma oferenda emotiva de gente preta no palco, o espetáculo musical “Leci Brandão – Na Palma da Mão”, do Rio de Janeiro, que integrou a primeira noite de retorno do Festival Palco Giratório após dez anos sem o evento acontecer no Recife, faz uma justa homenagem à cantora e compositora carioca Leci Brandão. Ela, que está prestes a completar 80 anos de vida e 55 de carreira, incluindo uma intensa atuação política desde 2010 (atualmente cumpre o quarto mandato como Deputada Estadual em São Paulo pelo PCdoB), é um dos maiores nomes do samba brasileiro, responsável por sucessos como “Isso é Fundo de Quintal”, “Só Quero te Namorar” e a imbatível “Zé do Caroço”.
Com realização da Lapilar Produções Artísticas em parceria com a Palavra Z Produções Culturais, e pelas mãos de um diretor de teatro, cinema e TV sempre atento à representatividade negra nos palcos e nas telas, Luiz Antônio Pilar, que ainda divide a adaptação dramatúrgica com Lorena Lima, também assistente de direção e cenógrafa, e Luiza Lorosa, diretora de movimento, tudo construído a partir de uma pesquisa do jornalista Leonardo Bruno, a montagem veio ampliar a categoria do teatro musical biográfico de ícones da música popular brasileira (o Recife, por exemplo, já viu espetáculos dedicados a Tim Maia, Elis Regina, Clara Nunes, Cássia Eller, Cazuza, Elza Soares e Ney Matogrosso, entre outros), fazendo a plateia terminar, literalmente, na palma da mão. Afinal, permanecer parado ficou quase impossível.
Ainda que não traga uma maioria de canções de todo conhecidas do grande público (sim, estamos tratando de uma artista que, apesar da grandiosidade da sua obra, não tem um repertório tão difundido), é a força do samba quem permeia toda a cena, e os corpos dos espectadores reagiram bem aos instrumentos que lhe serviam de base, especialmente cordas (violões e cavaquinho, a cargo dos músicos Rodrigo Pirikito e Matheus Camará) e percussão (pandeiro, tamborim, congas, entre variados apetrechos rítmicos de Thainara Castro e Pedro Ivo). A direção musical certeira é de Arifan Júnior. Entretanto, durante 1h20, o que se viu foi uma licença poética a uma possível biografia, pois mais de uma vez, no embaralhar dos fatos narrados e vividos, uma frase vinha resolver problemáticas daquela história: “Mas isso é teatro…”.
Portanto, ninguém pense que a dramaturgia seguiu ao pé da letra o que, de fato, aconteceu. E é essa opção que me faz questionar trechos do que veio à cena ou simplesmente deixou de aparecer. Em primeiro lugar, é preciso que se registre que a trajetória da tímida menina de subúrbio que em meio aos estudos descobriu o gosto por compor música, ao ponto de usar o samba como sua maior arma, é permeada por referências aos orixás, pois desde pequena ela já acompanhava a mãe no candomblé. Assim, como num ritual de matriz africana, cercado por folhas de mangueira que servem como principal e belo elemento cenográfico daquele quintal-terreiro, é Exú quem abre o espetáculo, pronto para rir, deglutir e recontar histórias, inclusive a dela.
Em meio às inserções de relatos sobre outras divindades afro, especialmente Iansã e Ogum, que protegem Leci com sua espada e escudo, é Dona Lecy, com “y”, mãe da cantora e compositora que conhecemos, quem serve de fio condutor de quase todos os acontecimentos, transformando-se não só numa impulsionadora, mas também numa produtora de faz de conta da filha para uma viagem ao Japão que lhe serviu de virada na carreira artística. E é nessa relação entre mãe e sua cria que a narrativa se apoia, no quanto ambas se respeitavam e se influenciaram, inclusive para Leci ser quem é: uma mulher educada, gentil, militante, ainda que reclusa na sua intimidade. A canção “As Coisas Que Mamãe me Ensinou” cai como uma luva nesse trecho, afinal, ela é resultado daquele legado materno, desde a avó.
O pai, exigente, faleceu muito cedo e foi a mãe, servente de uma escola pública, quem criou a filha, ensinando-lhe a tradição familiar, ética e religiosa. Pronta para ser porta-voz dos excluídos e sem se deixar estacionar, a compositora, que depois se torna cantora, abraça as oportunidades com afinco, seja no programa de TV do Flávio Cavalcanti, sua primeira grande chance de seguir ao estrelato, ou na luta para derrubar preconceitos e entrar para a história como a primeira mulher a integrar a ala dos compositores da Escola de Samba Mangueira, já como sambista de gabarito. Tamanho selo de qualidade faz o grande Cartola convidá-la a acompanhá-lo no programa da TV Cultura, “Ensaio”. A carreira, então, deslancha.
Com uma discografia que reúne mais de duas dezenas de compactos, LPs, CDs e DVDs, Leci Brandão conheceu o sucesso, mas também enfrentou cinco anos sem qualquer nova gravação, logo após romper com uma multinacional que não lhe queria permitir um repertório autoral. Ainda assim, como “quem é do axé sabe a graça de esperar”, ela foi a primeira sambista no Brasil a conseguir gravar uma obra inteira com composições próprias. Todos esses episódios aparecem na cena, ora apenas narrados, ora vivenciados, por três atores-cantores, Tay O’Hanna e Verônica Bonfim, respectivamente Leci Brandão e sua mãe, Dona Lecy, e Sérgio Kauffmann, desdobrando-se em variadas personagens míticas e humanas, a exemplo de Exú, da figura paterna de Leci, de Cartola e do líder comunitário Zé do Caroço, sempre a buscar empatia com o público. Os três intérpretes ainda dançam bastante, por vezes reproduzindo partituras corporais em repetição no falar das narrativas, além de cantarem muito bem.
Se o espetáculo segue uma linha de total afeto e carisma – até pela força da presença materna e da simpatia que a sambista Leci Brandão desperta na grande maioria das pessoas, apesar de certa sisudez que a marca, quais são, então, as restrições que apontei mais à frente? Em primeiro lugar, a necessidade de cenas de interação com o público, um risco grande, não nos momentos em que os artistas pedem para que o acompanhar de palmas se faça cada vez mais presente – na trilha do subtítulo da obra, uma frase também já recorrente nas apresentações da cantora –, nem na graça de dialogar com certos espectadores, mas especialmente na desnecessária ida à plateia para encontrar pessoas que saibam cantar a bela composição “Zé do Caroço”. De ágil e difícil letra, nem todo mundo pode acompanhá-la e, por pouco, a graça de um desconcerto não se fez.
Três outros pontos, ao meu ver, fragilizam a dramaturgia: o receio de tocar no desejo de Leci Brandão por mulheres (apesar dela ter se reconhecido lésbica ao jornal “Lampião da Esquina”, no final dos anos 1970, e composto a canção “Ombro Amigo”, abertamente homossexual), pois não há nenhuma cena ou nova personagem que possa desnudar tal aspecto. É verdade que existe uma brevíssima referência quando a jovem Leci engana a mãe, dizendo que uma canção de amor composta era para o pai, mas isso é pouco, afinal a temática é citada como algo importante na sua carreira (numa cena excessivamente didática, com um medley musical e apontamento de assuntos, sem nenhuma teatralidade, bem diferente do momento em que a mãe canta com a filha ao colo, exatamente a música que aborda a homossexualidade).
Alguém pode até argumentar que, na vida real, a própria Leci Brandão não escancara seus amores, mas se estamos tratando de um teatro cheio de liberdades poéticas à sua trajetória, por que reforçar tanto embotamento na questão da afetividade? Acho que os dramaturgos, talvez na esteira da própria homenageada, sempre tão reclusa sobre intimidades, se deixaram conduzir por certo pudor (ou seria receio da sua não aprovação?). Por fim, vale apontar que um outro elemento importantíssimo infelizmente cai como um paraquedas no enredo, sem qualquer preparação ou situação que nos faça compreendê-lo com maior afinco: a magnitude da atuação política da cidadã Leci Brandão, ao ponto de fazê-la chegar à Câmara dos Deputados de São Paulo por quatro vezes (somente em 2022, ela foi reeleita com 90 mil votos!).
Parlamentar dedicada à igualdade racial, ao respeito às mulheres, ao segmento LGBTQIAPN+ e às religiões de matriz africana, especialmente, acredito que tão significativo desempenho merecia um olhar mais apurado, detalhista mesmo, ainda que fosse pelo viés da própria mãe, que faleceu em 2019, aos 96 anos, mas a viu galgar cargos políticos desde 2004, quando a filha foi convidada pelo então presidente Lula para ser Conselheira da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, por dois mandatos, até 2008. Tudo bem que nenhum espetáculo pode dar conta de uma trajetória de vida, ainda mais aberta a espectros tão múltiplos, mas para que a festa-homenagem pudesse ser ainda mais vigorosa, no sentido de abordá-la por diferentes vieses, valeria a pena ter reforçado o conhecimento do público para esse perfil de líder que Leci Brandão ganhou, não só no samba, como também na presença política com o seu “aquilombamento da diversidade”, como intitula o seu gabinete político.
No entanto, nada disso invalida o resultado extremamente positivo de “Leci Brandão – Na Palma da Mão”, um musical sobre uma bamba do samba em sua ancestralidade, uma mulher preta que orgulha a todos nós. E as palmas, claro, acompanham e ecoam esfuziantes, como foi na grande e eufórica plateia do Teatro do Parque na quinta-feira 16 de maio de 2024, na abertura do tão aguardado Festival Palco Giratório no Recife. Detalhe: em março deste ano, o espetáculo – cuja estreia aconteceu em janeiro de 2023, no Rio de Janeiro – ganhou o 34º Prêmio Shell de Teatro, na categoria Direção, para Luiz Antônio Pilar, além de ter sido indicado nas categorias Ator (Sérgio Kauffmann) e Iluminação (Daniela Sanchez). Tudo compondo uma agradável roda teatral poética de puro samba.
Crédito das fotos: Simony Rodrigues.