Coletivo de Olinda encanta adultos e crianças com peça de bonecos carregada de lirismo e boa música
Imagine uma peça para crianças em que a palavra mistério aparece inúmeras vezes, perpassa a trama de cabo a rabo, arremata os diálogos e conclui ideias. Só isso já seria motivo suficiente para enaltecer ‘Quatro Luas’, atração da tarde de sexta-feira (17), no Teatro Marco Camarotti, como parte da extensa programação do Palco Giratório 2024 em Recife, iniciativa do Sesc Pernambuco. Afinal, instigar a imaginação da criançada de forma misteriosa é tiro e queda na tarefa de entretê-las, é um recurso imbatível na missão de fazê-las se enredar a um espetáculo. O fascínio das crianças pelo mistério é importantíssimo para que tenham um saudável amadurecimento psicológico e cognitivo.
Mas o infantil ‘Quatro Luas’, outro mergulho do coletivo O Bando, de Olinda (PE), no universo poético-encantatório de Federico Garcia Lorca, tem outras camadas, mais atrativos, inúmeros pontos de excelência artística. Conta a história de um menino, não por acaso de nome Federico, que quer muito chegar perto da Lua Cheia e conversar com ela. Numa de suas tentativas, ela está refletida na água de um poço, e então ele se aproxima tanto da cacimba que cai dentro dela, mergulhando em um sem-fim, feito uma vertiginosa Alice – e a peça literalmente se vira de ponta-cabeça a partir desse momento belo e trágico. É tudo mistério.
A bela árvore de ramos retorcidos, no centro do palco, gira em torno de si até ficar com a copa virada para o chão e as raízes para cima. Tudo se inverte na viagem-jornada do menino Federico, que agora só pensa em voltar para casa, viajando entre cataventos e girando descompassado ao luar. Ele vai encontrando pelo caminho bichos que falam (rãs, mariposa, uma gata), um exército de formigas, um cavalo invisível e… as quatro luas, uma em casa fase – minguante, nova, crescente e, finalmente, a que ele tanto queria ver, a cheia. Que inteligência cenográfica mexer com a posição da árvore e nos entorpecer de poesia a partir dessa virada! A iluminação de Eron Villar muito contribui também para essa transformação, assim como para criar todos os imaginativos climas da peça.
A poesia se instaura, mas sobretudo é um espetáculo divertido, bem-humorado, com boas tiradas engraçadas. Adultos também caem na gargalhada em vários momentos, não só as crianças. As duas rãs velhas são hilárias, a gata azul é antológica e inesquecível (inclusive por sua concepção estrutural), as luas são perfeitas em suas características ligadas às fases (como a minguante, que se diz minguada e fala sempre afetadamente, trocando o M por B ou P). Tudo muito bem pensado e muito bem escrito. Claudio Lira, que assina a dramaturgia e a encenação, foi muito feliz em tudo, em cada etapa da jornada, em cada palavra na boca de cada boneco e cada personagem. Uma sensibilidade a toda prova desse grande artista de Olinda, que tive o prazer de conhecer neste festival.
É um jeito inteligente, por exemplo, não só o menino estranhar que as rãs falam, mas elas também se espantarem com a mesma coisa: “O menino fala!” Esse outro lado do mundo da imaginação, o lado do avesso, fica claro nesse momento e mexe com a nossa lógica da fantasia. Sim, porque até para fantasiar certos criadores embutem a lógica – e Claudio Lira acertou em brincar com isso. E brinca com muito mais. Outra das luas tem até bordão – “Daqui a pouco passa!”, que ela repete, arrancando risadas lindas das crianças.
O texto é clássico, de norma culta, para combinar com o mundo da cultura fabular e a literatura de Garcia Lorca. “Havia no ar o perfume perverso da distância”- vejam que frase incrível e poética, numa peça que é prioritariamente voltada para crianças. Isso e lindo demais: ver que o dramaturgo não subestima o público mirim. Ele sabe que criança é capaz de entender metáforas e prosa poética. “O seu destino foi me encontrar para eu lhe dizer o que é destino” – vejam a complexidade dessa outra frase, o jogo de palavras tão perspicaz. Que maravilha de texto.
O espetáculo também toma alguns partidos interessantes de se tomar em peça para crianças, como ironizar os “bozotários patridiotas”, sem citá-los, ao colocar em cena um exército de formigas que bradam: “Nosso formigueiro jamais será vermelho!” Adultos entendem e riem – e quem disse que peça infantil é só para criança? Outro momento desses, de que gostei muito, é quando as rãs teimam em perguntar para o menino se ele acredita em vida eterna. Antes de saírem de cena, as rãs confessam que elas próprias duvidam disso. Tão importante não querer catequizar as crianças com um único jeito de pensar sobre a finitude e a morte. Um tema delicado, que envolve fé e é como mexer em vespeiro neste país de hipócritas. Parabéns pela coragem e até ousadia.
No elenco, uma uniformidade de talentos. Cantam, manipulam os bonecos, quebram a quarta parede e se dirigem à plateia – tudo com muita desenvoltura e um cuidado comovente. São eles: Brunna Martins, Célia Regina, Douglas Duan e Matheus Carlos. Que quarteto! Tão linda a cena em que Célia Regina para de “ser” o boneco e começa a cantar para niná-lo. A transição é arrebatadora, feita com delicadeza, pensada com inteligência. Em seguida, os outros três atores se aproximam, cantam com ela e se revezam passando o garoto de colo em colo. Uma cena que é muito Garcia Lorca, de quem se diz que até dedicou às babás uma de suas palestras sobre a força dos acalantos.
Douglas Duan, por sua vez, quase ao final, deixa de ser o menino Federico (até a trilha é interrompida) e muda o tom de voz ao falar diretamente para a plateia sobre a medalha de São Jorge que ganhou da mãe, em forma de depoimento documental. É outra transição incrível, rápida e tocante. Recurso muito brechtiano. Em seguida, ele volta a “ser” o menino e a peça continua. Brilhante!
Douglas Duan é um acontecimento a cada aparição, sobretudo ao interpretar a gata azul toda manhosa e ronronante. Cada “ahã” que ele faz em nome da gata é um deleite. Inesquecível. E Célia Regina nos presenteia com sua altivez de rainha em todas as cenas e seu carisma inegável, também brilhando, como os outros, tanto individualmente quanto em conjunto. Foi ela quem criou e confeccionou todos os expressivos bonecos, com a parceria de Romualdo Freitas. E é ela quem assina a direção de arte, ao lado de Claudio Lira. Célia Regina é potência multifacetada.
Gosto demais também quando o elenco faz chuva de pingos usando apenas estalos da língua. Maravilhosa e singela é a aparição da tão aguardada Lua Cheia. Uma composição de figurinos e adereços muito bem tramada para ajudar na finalização da fábula. E, por falar nos figurinos, destaco uma só peça, para representar todo o capricho do espetáculo nesse quesito: a capa escura, toda bordada de fios, usada pelo personagem cavaleiro protetor das quatro luas. Uma peça impactante no corpo do ator.
Agora, vejam bem: reparem que até agora não falei da música do espetáculo, que começa desde o saguão, com os atores surgindo feito ciganos mambembes e conduzindo com suas belas vozes a nossa entrada até a sala do teatro. Pois é uma das melhores trilhas originais que tive a chance de conhecer numa peça para crianças nos últimos tempos. Douglas Duan assina a dramaturgia sonora, a direção musical e a preparação vocal do elenco. Que trabalho primoroso. É muito perfeito chamar de dramaturgia sonora, porque o que ele faz não é comum, é muito acima da curva do que costumo ver e ouvir nos espetáculos. Todas as canções são arrebatadoras, com letras fortes e belas, ritmos contagiantes e completamente coerentes com a história que se conta. Que trilha, senhoras e senhores, que trilha. Em cena, o luxo de ter dois músicos ao vivo: Arnaldo do Monte, na percussão, e Zé Freire, ao violão.
Eles são uma força fundamental para o andamento do espetáculo.
Nada quero comentar sobre o final da peça, pois ‘Quatro Luas’ ainda vai viajar muito por esse Brasil afora, e não quero dar spoiler, estragar o impacto dos últimos minutos. Só digo que é emocionante, cativante, muito maternal, poético ao extremo, além de plasticamente belo. O mistério que tanto perpassa as falas da peça inteira se desvenda de uma forma tão linda quanto triste. Afinal, todas as coisas são o que são. E o menino buscava outra coisa, como arremata a canção final.
‘Quatro Luas’ já entra para minha lista de grandes peças vistas em 2024. Que sorte a minha sair de São Paulo para conhecer essa trupe de Olinda, embalando no palco a finitude fantasiosa de um garoto sonhador. Que pode ser você e que posso ser eu. Federico somos nós, que amamos tanto o teatro. Obrigado, Sesc e Palco Giratório. Obrigado, O Bando Coletivo de Teatro.
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Maurice Cox
21/05/2024 @ 08:25
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