A decolonialidade enviesada de “O irôko, a pedra e o sol”
É possível que um olhar mais apressado pense que “O irôko, a pedra e o sol”, do Grupo O Poste Soluções Luminosas, seja um espetáculo que cruze temas como sexualidade e religiosidade. Não. Não é. “O irôko, a pedra e o sol” é, por excelência, uma denúncia contundente de como operam e se espraiam as estruturas do colonialismo. A peça não só flagra como demonstra a abrangência e os efeitos do pensamento colonial, tão caduco quanto intenso, que segue a controlar ideias, afetos, crenças e corpos. Somos todos colonizados, vivemos um mundo ainda moldado por valores específicos e facilmente localizados, que se afirmam fazendo do outro, do “diferente”, uma constante ameaça.
“O irôko, a pedra e o sol” quer crer que fala da trágica história de amor de Severino e Sebastião, dois garotos de uma comunidade quilombola evangelizada do sertão pernambucano. “O irôko, a pedra e o sol”, porém, não tem protagonistas nem um lugar de ação tão definidos assim. A história é de uma inocência pisada, de uma miséria anônima, como diria Clarice. É a história de todos nós, que fugimos a regras, cuja finalidade de existir é, única e exclusivamente, garantir que nós, que fugimos a regras, sejamos apagados e, quando muito, tolerados pela confissão daquilo que é professado como pecado. “O irôko, a pedra e o sol” é o registro de uma luta sem fim entre oprimidos e opressores, também oprimidos, meros reprodutores de opressões seculares.
É disso que se trata o colonialismo. Uma opressão secular. “O irôko, a pedra e o sol”, em suas mais de duas horas de duração, enfrenta e se perde numa infinidade superficial de temas, quando, na verdade, concentra no afã de romper com essas estruturas de dominação seu eixo dramático. O espetáculo se faz diante da possibilidade de uma expressão outra da masculinidade, de uma expressão outra do papel social das mulheres, de uma expressão outra dos valores e cultos de matriz africana. Tudo isso não acontece ou acontece no limite do impossível porque o colonialismo dita o que é e o que deixa de ser um homem, por exemplo. O pensamento colonial é uma sofisticada engrenagem de censuras que se impõe sobre as mais variadas áreas. Inclusive, no teatro.
Com texto, direção, letras, cenário e iluminação de Samuel Santos, “O irôko, a pedra e o sol” não consegue romper em absoluto as amarras e convenções de um teatro, a seu tempo, colonial. O Grupo O Poste Soluções Luminosas, embora tenha uma pesquisa sólida sobre corporalidades outras e teatralidades outras, acaba assumindo uma preocupação excessivamente narrativa, textocêntrica, para compor a obra. “O irôko, a pedra e o sol” tem uma curva dramática convencional, com a jornada dos seus heróis muito esquematizada e fundamentada numa lógica questionável de causas e consequências. As melhores cenas da peça, no entanto, estão à margem dessa composição. Há um “O irôko, a pedra e o sol” preocupado em contar uma história e um outro “O irôko, a pedra e o sol”, despreocupado, mais ligado a fluidez dos movimentos e sonoridades.
“O irôko, a pedra e o sol” é fruto da colaboração do Grupo O Poste Soluções Luminosas com o Grupo Bongar – Meme Bongar, que executa toda a trilha do palco. “O irôko, a pedra e o sol” brilha nos trechos musicados, particularmente os que a virtuose se desprende da pretensão narrativa. O espetáculo se investe de muita força quando adota estratégias de encenação mais físicas e menos dramáticas. A cena que o elenco desce do palco e procura abraços na plateia e os dois números que arrematam os atos são muito expressivos nesse contexto. Teatro nem sempre precisa de uma lógica sequencial. Quanto mais liberdade se permite, mais interessante e convidativa a montagem se coloca. O Grupo O Poste Soluções Luminosas tem a chance de conduzir o público a um mundo novo, com éticas e poéticas de outra sorte, mas não consegue romper com esquemas e visões de mundo de uma tradição colonial.
O espetáculo é, por assim dizer, também uma vítima do discurso que denuncia. “O irôko, a pedra e o sol” não só aceita como reproduz opressões. Faz sentido, em pleno 2022, quando a peça estreou, associar o vírus da AIDS à homossexualidade? Como questionar a leitura estereotipada das religiões de matriz africana quando se apresenta um recorte tão estereotipado dos cultos evangélicos? Falta a “O irôko, a pedra e o sol” uma espécie de refinamento diante de uma exuberância de questões que pretende abarcar. Caso se resumisse ao primeiro ato, sem julgamento, sem vingança, sem morte, sem tragédia, talvez, a montagem causasse uma outra impressão. O Grupo O Poste Soluções Luminosas tem um caminho criativo muito interessante a seguir, basta acreditar na linguagem cênica que tem desenvolvido.
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