A graça de explorar o erro, por um brilhante coletivo de palhaços do Sertão do Moxotó
É muito prazeroso conhecer bons grupos de palhaçaria espalhados por esse Brasil afora e ver o quanto o teatro para crianças ficou mais rico em alegria, criatividade e, por que não dizer, em liberdade, desde que as lonas escassearam pelo mundo e os palhaços migraram dos picadeiros para os palcos, da serragem para o linóleo.
Na programação de sábado (25), do Palco Giratório 2024, em Recife, o singelo Teatro Capiba recebeu a trupe Teatro de Retalhos, da cidade pernambucana de Arcoverde, com o espetáculo ‘Riso Interior’. Eles são, mais especificamente, do Sertão do Moxotó, e se organizaram como grupo a partir de 2008, interessados na experimentação de linguagens da comicidade.
Alegria pura, diversão garantida, talento inegável. Assim é ‘Riso Interior’, um grande acerto do festival. É uma atração de rua, mas que se acomodou bem no Capiba e, pela trajetória até aqui, sempre se adapta a qualquer espaço, aberto ou fechado. Isso é um mérito: saber criar uma atração que, além de boa de ver, é boa de se acomodar, com versatilidade para arrebatar qualquer tipo de público, não importa onde esse público esteja instalado.
‘Riso Interior’ configura-se numa grande homenagem ao circo brasileiro, porque tem um roteiro de números clássicos de palhaços, as chamadas reprises, e os sempre presentes números de participação da plateia, além de fazer um divertido tributo aos velhos melodramas de circo-teatro e, de quebra, nos oferecer – desde o saguão – pérolas do repertório musical circense, por meio de uma banda arretada – para ser mais preciso, uma charanga, com vários instrumentos de sopro, incluindo sanfona, e uma bateria com pratos.
É a ‘Charanga que Anda’, como os palhaços do grupo a batizaram, formada pelos músicos Eduardo Espinhara, Edson José e Felipe Anderson. Há uma cena, muito bacana, em que os músicos tomam a frente do palco e seus instrumentos conversam entre si. Uma referência aos entre atos (entr’actes), uma modalidade musicada de intervalo, frequente nas óperas e no teatro musical, e que o circo adotou com renovações. A música reina também no debochado melodrama, escrito todo na forma de paródia musical proparoxítona, e cujo verso final é o epitáfio da protagonista: “Aqui jaz Angélica, moça hiperbólica, beleza helênica, morreu de cólica.”
E é justo que se nomeie logo cada palhaço, um conjunto harmonioso de artistas de múltiplos talentos, carisma, dedicação e rigor técnico: Arrepio (Alex Pessoa), Batata (Caroline Arcoverde), Quirino (Djaelton Quirino), Cazulino (Éder Lopes), Shidoro (Ênio Felipe) e Lombada (Tocha Ribeiro). Quirino é o diretor geral do espetáculo, que é bastante coletivo, mas também tem seus números feitos em duplas e, o que é incrível, não desperdiça a chance de que cada um deles ainda tenha seus momentos de brilho individual.
Essa excelência interpretativa constante – seja coletiva, seja individual – é muito difícil de ser alcançada em coletivos de elenco numeroso. Teatro de Retalhos consegue. Como público, é como se fôssemos afagados por um homogêneo grupo de amigos. Sim, dá vontade de ser amigo de cada um deles. E isso é meio caminho andado para que um espetáculo de palhaçaria seja bom: essa química imediata que se estabelece entre elenco e plateia. Em ‘Riso Interior’, não há dúvida de que há essa química. Que delícia que é.
A estrutura escolhida – e que o grupo conta para a plateia desde a primeira cena – é a de divisão do espetáculo em três atos.
É claro que foi uma escolha para organizar melhor em blocos todos os números e as cenas, um cuidado louvável com o ritmo e até com a dramaturgia do espetáculo. Mas a explicação disso para a plateia é bem mais divertida. Todo mundo que é do circo, eles nos dizem, sabe que temos sempre três chances de acertar – seja no malabarismo, no equilibrismo, na mágica, no trapézio, enfim, erra-se uma vez, erra-se na segunda e a terceira será o limite. “Por isso, criamos três atos: três chances de errar melhor, três atos para dar errado do jeito certo.” Maravilhoso, hilário, inteligente.
Que encantador é ver o palhaço assumindo que sua energia vem do erro. E vem mesmo. Os maiores teóricos dessa arte sempre nos alertam para o fato de que a graça do palhaço está em errar, como se esses artistas formalizassem uma “arte do fracassar”. Na verdade, é a condição humana, que fica escancarada na figura de um palhaço – tosca, falha, imperfeita. Mas é material de trabalho para o palhaço – e os maravilhosos pândegos do Teatro de Retalhos, assim como tantos outros representantes do circo contemporâneo, exploram e brincam com isso o tempo todo. Reinventando o circo a cada vez. Para nosso regozijo. Que nunca morra esse casamento tão feliz entre circo e teatro. E que a trupe de Arcoverde tenha a chance de se apresentar cada vez mais e mais, dentro e fora do Brasil.
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06/10/2024 @ 07:10
A sua capacidade de simplificar temas difíceis é admirável e torna o texto acessível para diferentes públicos.
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06/10/2024 @ 11:08
Parabéns, artigo muito bem escrito.