Abebé: o espelho reflete passado, cria mitologias plurais e projeta a gramática das águas, dos tambores e da fêmea força negra de Oxum
Como forjar um palco italiano que se converte em terreiro acolhedor a uma plateia sentada frontalmente? Pergunte-se ao Grupo de Dança Afro Negraô (de Vitória/ Espírito Santo), que cerziu este saber na gramática dos tambores que marcam tempo, ritmo e que falam; na mandinga da dança que negaceia, que ginga, que sabe ser a capoeira sua luta que dança ou sua dança que luta; que se sabe braço de cortar cana, mãos de colher algodão e cozê-lo, mãos de sovar pilão e trançar os fios de miçangas. São trinta e três anos de trabalho com a cultura, o imaginário, a espiritualidade e os saberes afro-centrados. O Negraô põe no centro da gira o Abebé, espelho da Orixá Oxum para, pelo instrumento, invocar o axé, as águas doces, a beleza e a força desta farta energia da abundância, do ouro, das cachoeiras e, também, das tantas transgressões que uma energia fêmea precisa encarnar para gerar mundos e resistir.
Entramos no Teatro Apolo na noite de 28 de maio de 2024, dentro da Programação do Festival Palco Giratório do Sesc Pernambuco, para compormos como público o corpo coletivo de um terreiro de festa, de encantaria: Ora Yê Yê O, Oxum; Ora Yê Yê, dança o NegraÔ: invocada está a energia da fertilidade, do amor, da beleza e da riqueza: Viva! Salve, Oxum, que num dos itans é filha de Yemanjá (rainha das águas do mar e esposa de Oxalá) com Orunmilá; Oxum que dança para Ogum, o guerreiro orixá, e o traz de volta quando ele decide abandonar forja do ferro para voltar a ser caçador; Oxum que tem inveja de Oiá, que seduz Iansã e com ela se deita; que cega seus raptores; que mata um caçador e se transforma em peixe d’água doce; que transforma o sangue da menstruação em penas de papagaio; que se deita com Exu para aprender o jogo dos búzios e que salva a Terra da seca.
São muitos os itans, ou mitos, que narram a potência de Oxum e é partir disso que o NegraÔ escolhe resgatar a sabedoria ancestral negra, pela dança, mas também por um potente amálgama sensorial que conjuga o tecido branco envolvendo a arena do palco e tracejando o espaço da gira e do terreiro; pela potente música executada ao vivo, pelo ogã, músico JaySant e pela voz potente e límpida de Ada Koffi. Duas presenças que se multiplicam em som e eco e ambiência/ invocação.
Pendem de cima as folhas, as palhas, os adornos – como cenário; estão em cena como adereços os leques de palha/ abebés; o figurino é saia e é luz e expande os corpos das/os bailarinas/os, que permanecem em cena todo o tempo, pois não há coxias. A escolha é corajosa, porque ancorada na consciência de corpo e rito que se constata em cada expressão facial e física do elenco de sete bailarinas/os. As coreografias vão instaurando o ritual, em uma movimentação muito bem pensada e criada por Elidio Netto (diretor do Grupo) e Gil Mendes. O espetáculo tem quase uma hora de duração no plano humano da cronologia, mas na espiral dos orixás a dilatação se faz nas tantas saias de Oxum, nos mergulhos que ela exige, no percurso para o elegun/ elenco, os rodantes poderem doar seus corpos à in-corpo-r-ação, ao espetáculo, à convocação de um Brasil profundo e que nos encanta: o que se compreende e se reconhece como terreiro, como quilombo, como espaço do encantado.
Os recursos estão todos entrançados: coreografia é dança e cada simples mover de pele, olhos, músculos, quadris; mas é também defumador e incenso; é luz que alterna as cores de Oxum (o ouro amarelo, o azul esverdejante da água profunda e fria da cachoeira, o vermelho-rubro dos lábios, dos líquidos de vida e ferro, a brancura e a penumbra); é música percurssiva, é atabaque e delicadeza de agogô, caxixi, chocalho – vibração e compasso; é extraída das palmas das mãos e dos pés; é agogô e carrilhão; é canto e ponto firmado pela voz; é escorrer do tempo que traz o ancestral para forjar o porvir. Os corpos das/os bailarinas/os executam o gestual respeitando a natureza e a força/ delicadeza de cada intérprete; as gingas viram capoeira, viram samba, insinuam notas de passistas e da gafieira; encenam a força da lida que construiu o país em seu “pretuguês”, idioma que dizia Lélia González ser o nosso verdadeiro falar, e desnudam que de sincretismo foi feita a força de viver a transcendência.
Neste trabalho do Grupo de Dança Afro Negraô, tudo conflui nas danças em que os oris giram e se deixam rodar para receber as energias e potências dos orixás, preparando a culminância do ponto para Oxum, aquela que centra as forças e rege seus filhos em abundância, para a sequência dilatada de suas saias, de seus ornamentos, de seu espelho que projetará ainda muitos aniversários de longa vida ao Negraô e à dança que reflete quem a encara e indica caminho de construção de um corpo coletivo, aquilombamento e transcendências.
É de lavar a alma ver um festival que empretece este país, que traz seguidos trabalhos nascidos da afrodiasporia e da afrobrasilidade, como acontece nesta edição do FPG de 2024 no Sesc Pernambuco. Tomara assim sigamos aprendendo a resistir e reexistir, mesmo que tenhamos enfrentado (e ainda estejamos lutando contra) anos de obscurantismos e tentativas virulentas de asfixiar, de fazer morrer por inanição a arte, a criação, a festa, a força das ruas e da lida, a espiritualidade dos povos originários deste rincão continental do sul global que somos – amefricolatinos e ladinos, ainda no dizer sábio de Lélia González – rompendo o véu do racismo estrutural pela reversão da sistemática tentativa de inferiorizar bens simbólicos de um povo pela insurgência, pelo canto, pela evidência e pelo culto ao saber e a um conceito afrocentrado de pensamento, necessário e justo, tão urgente quanto todo o tempo do mundo. Saravá. Axé.
Crédito das fotos: Guilherme Lostt.
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Qrcode estático
03/06/2024 @ 18:23
“Gratitude is the echo of kindness, and your posts are the reverberations that resonate in our hearts. Thank you for the continuous echoes!”
Amzx.art
06/10/2024 @ 12:37
Concordo com os pontos abordados.