Adobe: um solo de muitas em uma mulher e a dança-vivência de Luciana Caetano como semeadura, alimento, afeto e abertura de encruzilhadas
Os pés que empurram o chão para trás, para podermos caminhar, não deixam para trás nada do que o corpo carrega, eles se constituem das raízes que o forjaram e nesse mover não cabe esquecimento. Os pés que empurram o chão para trás carregam memória, semeiam nos sulcos que abrem nesta trilha o futuro, o afrofuturo que é ancestral: assim começo esta escrita movida por Luciana Caetano e o imenso encontro que ela nos proporciona com este trabalho:
Adobe, assim nomeado.
Uma palavra só, para estruturar com a devida pungência o que o Grupo Solo de Dança urdiu. Só, solo, de sozinha e de chão, de terra. Mas Grupo, porque Luciana sabe que é corpo quilombola, entendeu que sua família morava toda junta em três ruas de Goiânia (GO) e isso constituía um quilombo. Família negra que mistura raízes afro-diaspóricas dentro de sua própria afro-brasilidade: Bahia, Minas Gerais, Goiás… Adobe nomeia a refinada simplicidade de que é feito este trabalho; adobe é uma das variadas técnicas de construção em terra crua. Em outro jeito de dizer, o adobe é um tijolo de terra e fibras vegetais misturadas com água, que é moldado e seco ao ar livre (sem queima). O uso de terra na construção remonta a uma história muito antiga, já que é utilizada pela espécie humana há pelo menos 9000 anos. Adobe é consciência de ancestralidade, de raiz, daquilo que a escritora nigeriana Chimamanda Adichie nos ensina em sua já notória palestra ao canal TED sobre a necessidade da proliferação de histórias para desmontar a falácia da história única: colonizadora, branca, eurocentrada, patriarcal, patrimonial, estrutural e sistematicamente violenta e racista.
E Luciana nos oferece mais que a proliferação da história, em plural de relatos, de caminhadas, de dança, de cheiros, de sons, de paladares. São fios delicados e firmes em uma hora de vivência, da escrevivência de Conceição Evaristo que Luciana Caetano forja com terra e fibras na sua dançavivência. Caminhemos para trás um pouco neste texto. Voltemos a como o público entra, já se sentindo convidado mesmo, no palco-feito-terreiro-e-chão-de-casa: são doze pequenas xícaras daquelas de ágata vermelha, utensílio simples e comum nas casas populares, sobre papeis brancos que fazem a vez de pires. Uma disposição em “u” sobre o linóleo preto; mais ao fundo, do lado direito da plateia, um tamborete de madeira e uma pilha de “farnéis”: aquele jeito do boia-fria levar seu prato de comida embrulhado em pano branco de algodão (saberemos em breve serem também doze e o que contêm; saberemos ter sido boia-fria uma das tias de Luciana). Do lado esquerdo da plateia, ao fundo, vemos que no chão repousa um adereço de tecido branco, uma saia. Na rotunda preta ao fundo, serão projetados os vídeos que compõem organicamente o espetáculo, como cena, terreiro também, cenário, contradança, dançavivência.
Tudo é preciso e precioso, nada que está lá é acaso ou sobra ou deixará de ser parte do vivido, contado pelo corpo e pela luz, pelas imagens e pelos sons, pela trilha da própria voz de Luciana atravessada pelas mulheres que a compõem, também por alguns homens desta linhagem. O imenso refinamento deste trabalho mora no simples, nas galinhas e na vassoura de palha que aparecem no vídeo e recontam das origens de galhos de onde vem a bailarina, artista, pensadora em cena: o andar de cada parente é dança na caminhada, é partitura no corpo e lavar roupa, pilar o alimento, cozinhar, lavar os tachos, varrer viram dança, viram reza, viram benzedura, viram fé no que veio para cerzir o que se é e o que se virá a ser.
São doze farnéis de alimento que também podem ser doze trouxas de roupa lavada em beira de rio, trabalho tão desempenhado pelas mulheres negras que nutrem e limpam todo o tempo; sejam lavadeiras, sejam cozinheiras, sejam costureiras e empregadas domésticas “passadas de uma geração a outra de famílias brancas” – a violência hereditária da branquitude –, que não se sabem nutrir ou limpar sem sujar as mãos com esse serviço luxuoso, desempenhado com leveza e amor no coração de inúmeras mulheres como uma das tias de Luciana (algo que ela nos revela ao final, na roda que se forma com a plateia, e disso ainda falaremos adiante).
Os farnéis são também adobes que Luciana vai deslocando para traçar suas trilhas no chão da cena (em certo momento, eles me evocaram suspiros brancos espalhados pelo chão, eu neta de boleira/ doceira da cidade de Pesqueira, interior de Pernambuco). Tudo é poético em Adobe; tudo contundente mas sem rancor, porque o questionamento afiado de Luciana é o de uma artista da cena e da dança que tem a maturidade de um fruto de muitas décadas, que carrega consciente uma secularidade de saberes transmitidos na oralidade e na lida cotidiana, na escola da vida aquilombada (que nos evoca os ensinamentos de Maria Firmina dos Reis, de Carolina Maria de Jesus, do mestre Nego Bispo, de Beatriz Nascimento, de Lélia Gonzalez, de bell hooks, de Audre Lorde, de Maya Angelou, de Stela do Patrocínio, de cada uma de suas tias, tias-avós, primas, mãe, tios e pai, que conheceremos em imagem de foto, em nome e em alimento partilhado acompanhado de café na roda que se forma ao final, prolongado em gentileza de alimento ofertado e olho no olho). Forma-se um círculo de oralidade em que se transmitem o saber e as receitas e as cantigas de trabalho. Sim, adobe é também dança de trabalho, pedagogia de ensinar a transgredir pelo afeto, sentado em roda no chão.
Neste texto, como aprendido e sentido em adobe, o tempo vai em todas as direções, como Exu (a boca que come o mundo e abre os caminhos), nas encruzas traçadas pelo corpo-mulher da artista. Voltamos a outro momento em que o vídeo nos mostra Luciana na projeção se multiplicando nas tantas mulheres que é e que nela seguiram vivas/incorporadas; já em outro momento do vídeo, é uma Luciana pombogira que se repete em várias corridas de longa saia vermelha pelas trilhas abertas no mato – Jurema sagrada salve o saber, o espírito, a fé. E não podemos esquecer também a pipoca de Omolu, alimento que está em um dos farnéis ofertados e compartilhados. A circularidade do tempo, das raízes e da gira está no corpo que também se faz baobá em cena, de ponta cabeça, movendo pés em suspensão e alisando o chão.
A voz da artista ecoa na trilha, com sons de respiração de quem trabalha, de soluço e choro também e a evocar algumas palavras que pronuncia e seguem ecoando em mim, como: “afago do silêncio; aperto de choro” ou em outro trecho o poema ”ser-vir/ vir a ser/ ver-se/ liberdade (que é jeito de descolonizar corpos e saberes)/ ra-í-zes: anoto aqui o que a lembrança me permitiu, no jeito de grafar que consigo para tentar traduzir a força deste verbo encarnado/ feito carne e sangue/ rubra cor e dançavivência.
Em dado momento, já encaminhando o trabalho ao convite de romper distância entre cena e público, Luciana vestirá a saia branca de algodão, posicionada no fundo esquerdo do palco e seu corpo vai girar leve e transcendente até que pare. Vai caminhar, puxae seu banquinho, convidar doze pessoas que a testemunharam em presença ali e que se sentam em roda para abrir os farnéis e comer, conversar, apresentar uma a uma das doze parentalidades, entidades, oris de origem do seu quilombo.
Só nos resta aceitar o convite e entender que proliferar a história do açúcar fabricado por mãos negras e transformado em tantas iguarias, do adobe fabricado e assentado por essas mãos, dos figurinos e das vestimentas costurados à mão pela tia da bailarina e por ela mesma no algodão que teceram suas e seus ancestrais é a reconstrução das lentes e o ajuste de contas largas que Luciana Caetano trança ou põe uma a uma no fio de santo, na guia e nas encruzilhadas de uma vida de dança que iniciou aos seis anos de idade (em 1975), atravessando algumas das companhias que escrevem desvios à centralidade sudestina da arte nesta nossa Pindorama (Brasil é nome de invasão, de terra saqueada), irmanada e construída por braços indígenas e afro-diaspóricos, como o Grupo de Dança Energia (de 1986 a 1989); a Quasar Cia de Dança (de 1989 a 2000) e desde 1996 funda o Grupo Solo de Dança e em 2005 o Grupo Contemporâneo de Dança, nos quais é bailarina e coreógrafa, além de ser também geógrafa de graduação (pela Universidade Federal de Goiás) e professora de Pilates. Mulher de muito e profundo saber construído no mover-se, no semear de chão, no olhar que vê passado e tece futuro na presentificação de sua dançavivência.
Crédito das Fotos: Rasta no Cllick
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