Ainda carente de ajustes, o espetáculo-denúncia “Në Rope – A Fertilidade da Nossa Origem” vale por entrar na luta da defesa indígena
Num país em que “índio” ainda é fantasia de Carnaval e os verdadeiros indígenas continuam a sofrer genocídios, o espetáculo “Në Rope – A Fertilidade da Nossa Origem”, do Coletivo Grão Comum, com direção de Júnior Aguiar, é imprescindível que continue a resistir, mas merece podar excessos. Verdadeiro manifesto contra uma enxurrada de desmandos nesse Brasil, a montagem reforça a tese de que o jornalismo investigativo justo é um parceiro dos direitos dos povos nativos, mesmo que o idealize de maneira um tanto heroica e salvacionista. Afinal, interesses sempre há em meio à valentia.
Entre várias inspirações que infelizmente continuam como ciclo de violência contínua, o caso do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, assassinados em 2022 no Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas, deve ter impulsionado os artistas – e também jornalistas – Júnior Aguiar e André Zahar, autores e intérpretes da obra, na concretização deste trabalho. A peça estreou em janeiro de 2023 e, como muitas outras produções pernambucanas, fez duas sessões aqui, outra ali, carecendo ainda de reparos pela inconstância de apresentações com maior assiduidade. Digo isso principalmente pelo descuido nas questões técnicas.
Optando por uma interpretação que convoca ao real dois atores em diálogo sempre íntimo, às vezes com falas ditas em tom tão baixo que ficava impossível ouvi-los, foi imperdoável ter um computador aberto para o profissional que ia soltar as projeções com a luz incidindo nos olhos dos espectadores o tempo todo. Isso sem contar que nenhum dos vídeos – de imagens reais ou animação – acrescentava nada de novo ou de significativo ao enredo, tornando-se um recurso totalmente dispensável. Aliás, foi a palavra quem ganhou relevo durante toda a sessão que durou 1h40 no Teatro André Filho – Espaço Fiandeiros, na programação do Festival Palco Giratório, em horário e dia inconvenientes, às 16 horas de uma terça-feira (28 de maio de 2024). Público pequeno, então.
A palavra, aliás, era sempre contínua, transbordante, repisada, mas extremamente necessária. Basta lembrarmos que está aí a tese do “Marco Temporal”, na intenção de destruir a proteção aos territórios indígenas já demarcados, e o teatro, claro, precisa entrar nessa luta. “Në Rope – A Fertilidade da Nossa Origem”, cujo título se refere ao “princípio da fertilidade da floresta” (personagem que não se vê, até a inserção do dispensável vídeo, mas está lá), nos faz acompanhar um jornalista da mídia independente que, cansado das notícias de violência na região amazônica, resolve adentrar na floresta e investigar o assassinato do filho de um pajé.
Como numa tragédia anunciada, o clima é marcadamente envolto em sombras, com direito a cheiros e sons durante o seu percurso de denúncia e embate, especialmente com o advogado dos garimpeiros acusados do crime. Numa espécie de nicho-aldeia ao centro, além da presença coadjuvante, ao fundo, do músico Breu da Silva, executando uma tímida ambiência musical, e do indígena Caio Katson Fulni-ô, dois atores dão vida às personagens. André Zahar, bem comedido, vive o obstinado jornalista, enquanto Júnior Aguiar se desdobra nos papéis do seu editor-chefe, no pai do jovem assassinado, um xamã (é linda a cena em que ele, forrado por um manto de palhas, chora guturalmente pelo filho); e, finalmente, no advogado vilão.
Uso esse adjetivo porque me pareceu um tanto over tal figura, acentuada na gesticulação e no cinismo, quando já se sabe dos seus interesses, sem precisar ressaltar nada mais. Inclusive, a cena de violência física – um tanto forçada e inverossímil – que acontece entre ele e o jornalista com um simples gravador na mão merecia ficar nas entrelinhas, afinal, todo o mundo já conhece como o garimpo ilegal e seus financiadores resolvem pendências. Com o uso de pontuais vozes em off em que o ficcional e o real se borram, além do aproveitamento de reflexões de vários pensadores indígenas salpicadas na narrativa (há indicação à “queda do céu” que o xamã yanomami Davi Kopenawa fez diante da devastação ambiental), a peça resulta numa crescente dramaticidade, mas poderia ser mais enxuta, cena por cena.
É que formatada numa jornada em três atos, com falsos finais, até parece que o momento de descoberta da espiritualidade ancestral do aguerrido protagonista, e tudo o mais que vem depois, se torna dispensável. Na certeza de que pelo menos Júnior Aguiar desenvolve atividades xamânicas, talvez esse seja o cerne do que a dupla de atores/autores quis reforçar – com direito a uso de rapé e ao “chá mágico” ayahuasca –, então vale excluir redundâncias no correr do texto. O palavrório é tanto que ainda há espaço para se tratar dos dilemas políticos da América e, pela representação e discurso do boliviano Evo Morales, uru-aimará que subiu ao poder, não só se questiona onde foram parar os “empréstimos” provenientes dessa terra, mas também o que é ser indígena e qual o lugar que as etnias podem ocupar.
Ou seja, é um transbordar de questionamentos remoídos enfaticamente. Ao término, como num julgamento sobre máquinas de extermínio, lança-se uma problemática que ainda precisa ser abraçada não só pela frágil Justiça brasileira e mundial, mas por todos nós em atenção aos povos originários. “Në Rope – A Fertilidade da Nossa Origem”, como denúncia pela gente que é floresta, faz a sua parte com a dignidade de um libelo, mesmo podendo estar cerzido engajadamente de maneira bem mais direta.
Crédito das fotos: Guilherme Lostt.
As opiniões expressas nas resenhas publicadas neste blog são de responsabilidade exclusiva dos críticos que as assinam. O Sesc PE não se responsabiliza pelas opiniões, comentários ou avaliações feitas pelo autor, que são independentes e não refletem, necessariamente, a visão de nossa instituição.
Jr. Aguiar
29/05/2024 @ 18:39
Feliz é a arvore que se poda, feliz é a pedra que lapidada ganha valor de joia. O olhar crítico de Leidson contempla o processo e indica onde ajustar, tudo termina por ser uma tentativa de cumprir a missão de ser ator e de fazer uma cena verdadeira e que a mesagem toque no coração de quem assisitiu. A demanda tecnica depende do cuidado acentuado, depende da responsabilidade de quem assume fazer, depende do diretor que precisa ter o conjunto da obra sobre seu dominio e orquestração. Por vezes, a guerrilha fragiliza o apuro, nas tentativas de sobreviver a tanta dificuldade. Agradeço por dizer que nossa pesquisa de criação tem valor, que resistir é “imprescindível”. agradeçemos pelo tempo que dedicou a refletir e contemplar o trabalho. gratidão ao Festival Palco Giratório por nos oferecer uma oportunidade de demonstrar o teatro que acreditamos fazer com coração e espírito em plenitude.
Seu domínio DREX pessoal
29/06/2024 @ 08:59
Este post foi incrível! Muito obrigado por compartilhar.
Oportunidades de Negócios Manaus
02/10/2024 @ 10:47
A clareza com que você expôs os pontos mais complexos do tema foi essencial para a compreensão do conteúdo.
João Pessoa
02/10/2024 @ 10:52
Gostei da forma como você conseguiu simplificar conceitos complexos sem perder a profundidade necessária.