“Alegria de Náufragos” é para poucos e bons e não há problema algum nisso
Na estrada desde 2007, o Grupo Ser tão Teatro é dono de uma caminhada curiosa. Em meio à previsibilidade de montagens como “Flor de Macambira” e “Farsa da Boa Preguiça”, a companhia paraibana se desfaz de fórmulas e surpreende até os mais curiosos com “Alegria de Náufragos”. A peça é tudo, menos a história do laureado professor Nicolai Stiepánovitch. “Alegria de Náufragos” é um grande desabafo e, também, uma grandessíssima declaração de amor. O espetáculo tem a energia de uma confraternização de fim de ano de firma misturada à tensão de um Natal em família. É frio na barriga do início ao fim.
Em cena, Cely Farias, Rafa Guedes, que vale por 300 atores, e Thardelly Lima, substituído por Polly Barros devido às gravações da novela das 18h, se esforçam para sensibilizar o público com o despertar da inocência do professor Stiepánovitch, na juventude de seus 72 anos. De repente, o orgulho do velho mestre diante de suas próprias conquistas se esvai em meio a uma debilidade de valores que ele cultivou desde sempre. O trabalho na universidade, o rigor da ciência e até a família tradicional, com isso, se esfacelam e fica evidente a figura de um sujeito que passou pela vida, deixando a viva passar. Com um currículo invejável, falta ao professor Nicolai Stiepánovitch, um homem marcado pela insônia, um tanto de alegria. Nem que seja a alegria dos náufragos.
Cely Farias, Rafa Guedes e Polly Barros falam, na verdade, deles mesmos. Enquanto se revezam no vasto recorte de personagens – Stiepánovitch, sua esposa, sua filha, a pequena órfã de quem ele é tutor, o porteiro da universidade e seus muitos alunos – o elenco do Ser tão Teatro fala dessa gente estranha que faz teatro e é feliz fazendo teatro. Essa gente que precisa suportar a demora na liberação de verba de edital público, essa gente que convive com gente sem talento, essa gente que se vê obrigada a fazer elenco de apoio na televisão, essa gente que vê seus trabalhos premiados sendo ridicularizados pelos amigos em suas montagens e, mesmo assim, é feliz. “Alegria de Náufragos” é para poucos e bons e não há problema algum nisso.
É uma peça para iniciados. Com texto e direção assinados em parceria pelo potiguar César Ferrario e pelo pernambucano Giordano Castro, “Alegria de Náufragos” é costurada por referências e autorreferências. É um espetáculo que fala, que provoca, mais diretamente quem é da lida do teatro. Tem uma camada de texto e de ações que são apreendidas mais diretamente pela memória e pela dor, num misto de crítica e elogio. “Alegria de Náufragos” é uma brincadeira muito séria. É como se os atores estivessem, a todo instante, testando a si mesmos e testando o próprio teatro, testando a entrega a algo tão absurdamente difícil de ser suportado, mas, ao mesmo tempo, tão absurdamente capaz de produzir e espalhar felicidades.
O público médio, claramente preterido em “Alegria de Náufragos”, acompanha tudo com o pavor gostoso da arquibancada dos circos. O espectador, que não faz teatro, não precisa entender tudo o que está em jogo na construção das cenas. A sorte é que o teatro é uma arte convival e, se for para rir, a plateia vai rir de qualquer jeito, porque sempre tem alguém do lado que não vai se controlar. O hermetismo de “Alegria de Náufragos” é engraçado, ácido, escatológico. Tem torta na cara, tem tapa na cara, tem talco na cara, tem água na cara, tem açúcar na cara, tem verdade na cara. É um crescente, sem limites, sem modéstia e sem pudor. Tudo isso para provar que vale a pena, sim, fazer teatro.
Um tanto violento pelo excesso de informações e sensações que condensa, “Alegria de Náufragos” é um trabalho que se sustenta ou se fundamenta pela excelente performance dos atores. Rafa Guedes é um nome desses para anotar e sair procurando nos cartazes e fichas técnicas. Se a intenção era provocar lamento e piedade diante da sina grandiloquente e desastrosa do professor Stiepánovitch, o Ser tão Teatro naufraga feio. “Alegria de Náufragos” navega a pleno vapor por outros mares. O espetáculo fala e critica e provoca e desafia quem faz teatro, mas deixa o resto dos pobres mortais com o senho de ter uma existência mais feliz aos próprios olhos que aos olhos do mundo.
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