“Alguém pra fugir comigo” brinca com realismos enquanto seduz o público
Se o Bily entra em cena e pega o Tigrão dele, “Alguém pra fugir comigo” teria cumprido sua jornada. Com encenação de Analice Croccia e Quiercles Santana, o espetáculo do Resta 1 Coletivo de Teatro é incerto e corajoso, como a vida, essa luta quase eterna contra uma derrota anunciada, deveria ser. Em cena, além da própria Analice Croccia, Ane Lima, Caíque Ferraz, Clau Barros, Pollyanna Cabral, Raphael Bernardo e Wilamys Rosendo sabem bem o que querem fazer. A montagem tem uma clareza muito convicta de suas escolhas, muito embora isso não a conduza para um lugar de conforto. “Alguém pra fugir comigo” erra e acerta, erra e acerta, erra e acerta, erra e acerta. É um espetáculo vivo, tem fragmentos lindos e, a todo instante, conduz seu movimento, sua energia, para um lugar de encontro.
“Alguém pra fugir comigo” provoca uma escuta muito delicada. O que você fez da vida? O que a vida fez de você? Quanto isso lhe custa e até quando você aguenta? O que sobra para viver? Sem coragem, para onde é que a gente vai? Essas e outras tantas perguntas, nada retóricas, costuram uma dramaturgia que perpassa tempos e tipos os mais variados, aparentemente provocando, mas, na verdade, acolhendo. “Alguém pra fugir comigo” se anuncia panfletário, grita, chama para briga, cospe na cara, mas entrega algo de outra natureza. “Alguém pra fugir comigo” é um abraço sincero, é uma mão estendida, é um ombro amigo. A preta Liberdade vai fugir, sim, quantas vezes for preciso, mas ela quer, sobretudo, que a mãe fuja também, mesmo que não fujam juntas.
Transitando por linhas de composição muito distintas, “Alguém pra fugir comigo” é um espetáculo que não se pode dizer preso a uma narrativa. Tem uma história sendo contada, sim, mas a história mostrada é mais sensível e sedutora. A plasticidade, a materialidade, da montagem é tão consistente quanto o enredo e, na grande maioria das vezes, cria uma camada de informação, fora do lugar do meramente ilustrativo. Analice Croccia, Ane Lima, Caíque Ferraz, Clau Barros, Pollyanna Cabral, Raphael Bernardo e Wilamys Rosendo mantém um ritmo intenso e propositivo de troca, de colaboração, que faz cada cena transbordar sobre as demais, mesmo que não tenha propriamente uma conexão literal, dramática. O Resta 1 Coletivo é e funciona como um grupo de teatro e isso não é pouca coisa.
Nos palcos desde 2017, “Alguém pra fugir comigo” tem, ainda, uma provocação de estreia. É fresco. É presente. É arriscado. O elenco avisa que não há nada de novo ali, que é melhor o público não criar expectativas, que não vai representar nada nem defender ideia alguma, mas, ao fim, não cumpre o receituário por completo. “Alguém pra fugir comigo” tem uma hipótese, uma tese, uma intenção argumentativa que acompanha o espetáculo da primeira e enfadonha cena ao exuberante e profundo ato final. Enquanto Liberdade foge sozinha e acaba sendo capturada pelo escroto do delegado a mando do comendador, aquele asqueroso, o Resta 1 Coletivo de Teatro foge em bando e leva junto o público, totalmente entregue a sua poesia.
“Alguém pra fugir comigo” explora, pelo menos, duas possibilidades de teatro de viés mais realista. Há no espetáculo um recorte dedicado à representação de tipos. Liberdade e sua mãe, por exemplo, são apresentadas vindo de um outro lugar e um outro tempo, são uma verdade inventada. Há, ainda, um outro recorte que se volta para uma espécie de desvelamento dos próprios atores. É quando conhecemos o cãozinho Bily, dono do Tigrão que passeia por muitas cenas. Bily, ao contrário de Liberdade, é impregnado de um registro de real mais tátil. No corpo dos atores, essas dimensões exigem expressões muito particulares. A verdade é que o Resta 1Coletivo de Teatro não domina com precisão nenhuma proposta de composição, mas é muito ciente disso.
Em nenhum momento, as performances dos atores saem do lugar do rascunho, do experimento. É tudo uma bela e honesta tentativa. “Alguém pra fugir comigo” tem, no entanto, chaves de criação muito ricas, sem que nenhum integrante se sobreponha aos demais. O Resta 1 Coletivo de Teatro atua em grupo e, insisto, isso não é pouca coisa. Fora do campo da narrativa, a montagem oferece uma dinâmica muito interessante. Os trechos musicados e coreografados são muito potentes, embora tímidos. “Alguém pra fugir comigo”, mesmo enveredando por temas os mais indigestos, estabelece um diálogo muito afetuoso com o público. Dá vontade de ver mais, dá vontade de continuar vendo. Dá vontade de ver outra vez. Dá vontade de reencontrar “Alguém pra fugir comigo” mais consistente, mais seguro, mais acabado.
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