Arreia: a retomada das raízes e dos saberes originários é flecha certeira
O som das maracas é o que anuncia a entrada das caboclas, e nós estamos sentadas/os na gira, na roda, no instaurado terreiro que é Arreia. As vozes entoam o ponto: “A cabocla Jacira é uma cabocla de pena/ soltei ela na mata/ pra ela trabalhar” e entram Iara e Íris Campos. Sim, a coletividade ali reunida vai ver e viver um ritual de elevação, arte que é banho literal de enraizamento, pertencimento.
“Pra ver a força que a Jurema tem/ pra ver a força que a Jurema dá”.
As irmãs gêmeas, Iara e Íris Campos, são artistas conhecidas de qualquer um/a que esteja atenta/o – sobretudo no cenário de Recife/Pernambuco (já circularam com este e outros trabalhos autorais ou como intérpretes pelo estado e por outras cidades/ estados do país)-, à inquietude delas, seja na atuação constante com a linguagem da dança, seja nas artes da cena em compreensão expandida, seja na produção, na música, no audiovisual. Se é de se louvar o existir e a trajetória coerente e potente de uma artista, imagine-se o regozijo de vir a dose em dobro?
Há vinte anos, as artistas e brincadoras fazem parte do Caboclinho Sete Flexas (grafado com “x” mesmo), que perpetua em movimento vivo e salvaguarda a cultura indígena e a mestiçagem – sobretudo com as raízes da matriz afro-diaspórica – e a força da Jurema em nossas terras; para quem ainda ignore que não se trata apenas de folclore ou de um “folguedo de carnaval”. Precisamos, pois, mesclar a história de Iara e Íris à do fundador do Sete Flexas e sua parentalidade, que zela pela continuidade dessa tradição, de seus saberes e da força de cura envolvida em todo esse universo. Ele é José Severino dos Santos Pereira, o Mestre Zé Alfaiate (nascido em São Lourenço da Mata, em 25 de julho de 1924,) sócio fundador do Caboclinhos 7 Flexas, desde 7 de setembro de 1971, no bairro de Água Fria, na zona norte de Recife.
Mas Alfaiate lembrava que criou a brincadeira ainda um pouco antes, no ano de 1969, em Alagoas. Nessa época, sonhou com o Caboclo Sete Flexas – “cacique, pajé, deus do sol e deus da lua, moreno, alto, foi criado sozinho nas matas e é curandeiro” – a quem fez pedido. E em decorrência da promessa, como oferenda, decidiu criar o clube sob a proteção daquele guia. Destaque-se, portanto, porque o fundamento é assentado com tanta profundidade entre caboclinho e jurema no Sete Flexas.
E o trabalho é intenso para manter o Grupo vivo e ativo, resistindo ao rolo compressor de violências contra os indígenas (seus corpos, seus saberes, seus modos de viver) e combatendo o espistemicídio/ a sistemática tentativa de destruição dessa cultura originária e das formas como ela se amalgamou às matrizes ancestrais negras forjando a cultura cabocla e mestiça e alimentando sua espiritualidade. Assim, adentra o texto o nome de Paulo Sérgio dos Santos Pereira, ou Paulinho 7 Flexas: filho e parceiro incansável de Alfaiate, ao lado da mãe, Marlene Francisca Nepomucena. Figura importante na organização do grupo e um dos mais respeitados dançarinos tradicionais do país, Paulinho 7 Flexas dança desde os dois anos e é ele o diretor do espetáculo Arreia.
No dizer do mestre Antônio Bispo dos Santos (o nêgo Bispo, que fez sua passagem em dezembro de 2023): “Nós somos os diversos, os cosmológicos, os naturais, os orgânicos. Não somos humanistas, os humanistas são as pessoas que transformam a natureza em dinheiro, em carro do ano. Todos somos cosmos, menos os humanos. Eu não sou humano, sou quilombola. Sou lavrador, pescador, sou um ente do cosmos. (…) A cosmofobia é a grande doença da humanidade.”
Iara, Íris e Paulinho, atentos ao céu e aos sonhos, são cosmológicos que -dançando, bebendo o vinho da Jurema Sagrada, na emanação da fumaça dos cachimbos de caboclo e ouvindo as/os encantadas/os – articulam sua parentalidade, sua ancestralidade indígena e mestiça. Arreia é mais que um espetáculo, é um manifesto e é uma celebração; é uma luta, é arrepio na pele e incorporação; é convocação às/aos encantadas/os e às/aos mestras/es para honrar essa cosmogonia e somar seus gritos de guerra, sua toré cabocla, o bater de seus tambores (atabaque, tarol, caracaxá) e a marcação das preacas (instrumento de arco e flecha em madeira), com os pés no chão de terra batida, na afirmação de sua terra indígena.
Em soma com a trilha sonora assinada por Johan Brehmer, o figurino de Maria Agrelli e do caboclinho Sete Flexas e com a luz de João Guilherme de Paula, Iara e Íris criam um mover de resistência dos povos indígenas/ caboclos nordestinos revelando a urgência do que nos dizem, do que apontam sobre a terra, o chão, a vida. Está lá o rito inteiro: na Jurema se existe e se faz força e ciência cantando, dançando, bebendo o vinho da casca da árvore (a Jurema sagrada) e espargindo mel e fumaça do cachimbo. Pelo transe do corpo as sete cidades da mata se abrem e faz-se um círculo que dá sustento a este mundo, ao nosso pertencimento como filhos deste chão e de uma raiz indígena mestiçada, cabocla, nordestina.
Arreia é encantamento, pertinência, coerência de uma pesquisa que constitui os próprios corpos e as identidades de Iara, Íris e Paulinho. Arreia é arte como urgência existencial. A pesquisa é longa e antiga, se confunde com os próprios corpos e a dança entranhada nas brincantes caboclas Iara e Íris. Mas Arreia, não por acaso, surgiu em formato mediado pela tecnologia, digitalmente, quando o mundo vivia a pandemia decorrente da Covid-19. Ecoam as flechas e os sonhos, as loas e manobras de corpo na dança avisando aos humanos (não cosmológicos) que a vida é acontecimento precioso, que precisamos reaprender e curar nossa responsabilidade pelos territórios, pelos terreiros, pelas águas e pelos ares, pela nossa confluência com os outros seres viventes.
Ao enfrentarem de forma radical (no sentido de raízes moventes mesmo) os limites existenciais que os racismos, o colonialismo e o capitalismo sistêmicos e estruturais impõem, Iara e íris vibram um sim às harmonias cósmicas e, tão logo lhes foi possível, levaram o trabalho ao modo de presença, na sede do Sete Flexas e em vários outros terreiros, todos onde foi possível ir. E é preciso que percorram ainda mais – levando alfazema, mel, frutas e o Salve desse manancial de fundamento -, que percorram muito mais, pois Arreia é atemporal e urgente ao mesmo tempo.
As opiniões expressas nas resenhas publicadas neste blog são de responsabilidade exclusiva dos críticos que as assinam. O Sesc PE não se responsabiliza pelas opiniões, comentários ou avaliações feitas pelo autor, que são independentes e não refletem, necessariamente, a visão de nossa instituição.
6K backlinks
02/06/2024 @ 09:24
Agreatblendofinformationandanalysis.
www.incrivel.top
03/06/2024 @ 05:24
With each post, you paint a canvas of joy. Thank you for creating such beautiful masterpieces!
www.amzx.art
29/06/2024 @ 09:24
Seu blog é uma verdadeira fonte de conhecimento. Obrigado por compartilhar!
QR Code Manaus
06/10/2024 @ 11:14
Me fez refletir sobre o assunto, obrigado.