O Centro de Criação Galpão das Artes é uma festa
Geraldo Cosmo pode fazer qualquer teatro. Qualquer um. Independente da chave de interpretação, ele teria êxito. A minha sincera dúvida é se um outro ator, forjado nos dramas clássicos, por exemplo, ou numa cena de linguagem mais expressionista, dominaria o teatro que ele faz com o elenco do Centro de Criação Galpão das Artes. Geraldo é o poeta Joaquim Simão na trama de “O peru do cão coxo” e, mesmo com o personagem fora do foco, ele concentra a atenção do púbico, num espetáculo que festeja as possibilidades quase infinitas da teatralidade de matriz popular.
“O peru do cão coxo” é festa do início ao fim, fazendo jus ao que o grande Luiz de Mendonça dizia sobre a experiência do Teatro de Cultura Popular. Teatro é festa, sim. É uma alegria que dilui sentidos, enquanto bota reparo sobre os malfeitos do mundo. É uma grande comunhão, na qual nunca uma mão fica sem par, seja para rodar numa ciranda ou para ajudar a fugir dos perigos da vida. A peça, como um bom folheto, arremata um inusitado de situações que se encavalam num ritmo acelerado, até uma apoteose, cristã e moralista. É um texto de Ariano Suassuna, com sua graça e suas crenças. O Galpão das Artes, a bem da verdade, não se prende ao mestre.
Charlon Cabral tem uma direção generosa. Também ator e músico, ele acompanha do palco, ou do picadeiro do Grande Circo da Onça Malhada, todo o desenrolar da trama. Ninguém sai de cena. No máximo, uma troca ligeira de figurino e adereços. Sem prejuízo algum à narrativa, Cabral propõe uma encanação inspirada no jogo circense, com os atores evoluindo em números, variando em grau de dificuldade. Todos cantam, dançam, tocam vários instrumentos, têm um trabalho de corpo rico, unindo o delicado e o caricato, e o mais importante: todos estão absolutamente presentes durante a apresentação, assistindo e reagindo com a plateia.
Há quem veja nisso uma influência épica. Prefiro pensar o contrário. O épico, quando organiza sua forma, é que deve ter encontrado inspiração no teatro popular. “O peru do cão coxo” não destrói a imaginária quarta parede, porque, simplesmente, nunca contou com esse recurso. Toda a cena é aberta e tem o público como partícipe. O espectador é envolvido e absorvido pela trama e tem papel decisivo e duvidoso no julgamento de Joaquim Simão. Ele trai a mulher, Nevinha, vivida por Gaby Salles, não por safadeza sua, mas por perversão de Dona Clarabela, personagem de Thiago Freitas. Completa o quarteto central da dramaturgia, o vilão Aderaldo Catacão, interpretado por Deyvson Alves.
Embora não tenha uma performance regular do ponto de vista individual, o elenco, formado ainda por Patrícia Assunção e Aldemir Freire, funciona muito bem no jogo coletivo. “O peru do cão coxo”, do Centro de Criação Galpão das Artes, lembra uma quadrilha junina, com o enredo e o regional servido apenas de pretexto de luxo para a evolução de casais. Há cenas muito divertidas no troca-troca de Joaquim Simão, Nevinha, Dona Clarabela e Seu Aderaldo Catacão. A peça é uma farsa que fala de luxúria, cobiça, preguiça e avareza, temas clássicos do universo de Suassuna, mas sem a elaboração dramática de outros textos de seu repertório. Basta dizer que o peru, coitado, nem de longe tem o mesmo peso que a porca de “O santo e a porca”.
Com quase 25 anos de história, o Centro de Criação Galpão das Artes, da cidade de Limoeiro, é expoente de uma geração recente de artistas de um teatro poderoso. É preciso sublinhar que a desenvoltura do elenco em “O peru do cão coxo” não causa surpresa. Ela é fruto de uma continuidade de trabalho, de empenho e de estudo de uma cena que se expressa em múltiplas linguagens. Há um delicado refinamento na criação do grupo, que consegue tecer uma encenação diversa sem que um elemento se projete sobre os demais. Tudo se articula e tudo aparece. A musicalidade de “O peru do cão coxo” é exemplo disso. Do maior ao mais incidental recurso de som, nada sobressai em excesso e nada passa desapercebido. O teatro popular parece livre demais, quando, na verdade, só é possível pelo rigor.
“O peru do cão coxo” não é um espetáculo que fale sozinho. Ele fala por uma trajetória de dedicação de um grupo de artistas e fala por uma linhagem de criadores que, mesmo com as devidas ressalvas, se esforça em manter uma tradição. É o bom e velho teatro de matriz tradicional popular, com o capricho e as ranhuras que lhe são tão particulares, quando do encontro com o sotaque do Nordeste brasileiro. “O peru do cão coxo” é vivo, intenso, dinâmico e alegre na exata medida que se propõe. Há pouca pretensão e muita entrega. Geraldo Cosmo e seus colegas de cena são uma escola. Foi um prazer aprender com eles.
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