Caosmose, do Grupo Experimental, é a escolha de um corpo coletivo que se indigna, que pergunta, que dança propondo novas engrenagens e instaurando brechas na sensibilidade, na cidade, no combate ao abandono programado de corpos.
Não se permitir a docilização dos corpos; dançar até mesmo depois de parecer não haver onde dançar. Para forjar sua poética, acordar cada átomo do organismo, traçar outros espaços e modos de existir: assim é que atua Monica Lira – antes mesmo até, desconfio, de saber-se bailarina e coreógrafa e raiz movedora do Grupo Experimental, que se espalha em galhos de seu ventre direto, como a bailarina Rafaella Trindade, sua filha, e as tantas outras filiações que já compuseram e foram compostas por esse Grupo em trinta anos de existência. Uma vida inteira dedicada à dança, a um território, a uma cidade e suas belezas, mas também à resistência contra as engrenagens que não desejam artistas pensantes, politicamente atuantes. Um dos projetos mais importantes, que revela a face educadora de Monica, é o Núcleo de Formação em Dança, que manteve por mais de uma década, formando bailarinas/os que hoje seguem atuando em diversas partes do mundo.
Mas Recife, sempre, é o “locus” de criação; é a cidade estuário a partir da qual fervilha a obra de Monica Lira e do Grupo Experimental, mesmo sendo ela uma migrante, pois que é ilhéu, nascida em Fernando de Noronha. Se, ao sabor das memórias dos afetos, sem mesmo seguir rigor de cronologia, levanto uma pequena parte da trajetória de espetáculos: Zambo (1997), Quincunce (2000), Barro-Macaxeira (2001), Conceição (2007, do qual sou parte, assinando roteiro e dramaturgia; que virou um documentário em longa metragem em 2021, intitulado “Conceição em nós”, que co-roteirizei e co-dirigi), Pontilhados (2016) – apenas alguns – e Caosmose (de 2023, aliás, nome que propus para o trabalho), já vemos o quanto as ruas; outras linguagens artísticas (música, literatura, artes visuais, arquitetura); questões urbanas (geopolítica; mangue, periferia e centro; mobilidade; gentrificação; ocupação de espaços) e humanas (afetos, redes, violências e silenciamentos); espiritualidade, fé e morro habitam, orbitam e ensejam a obra do Experimental.
E alguém pode levantar a questão: se eu já sou parte tão entranhada a ponto de me sentir e fazer parte da rede Experimental – inclusive tendo escrito texto para o programa de Caosmose, tendo batizado o trabalho -, tenho isenção para esta escrita crítica sobre ele como registro para o Festival Palco Giratório? Autocrítica, respondo. O exercício da reflexão começa no criar, no articular coletivamente uma obra. Aprendi com a própria Monica Lira: ela assina a direção dos espetáculos, é extremamente cuidadosa com cada aspecto, exigente sim, mas de uma generosidade tamanha. Todes que com ela trabalham são criadores também. Por isso criou essa constelação Experimental que segue colaborando por trinta anos, dentro de Recife, e circulando pelo Brasil, em países da América Latina e do continente europeu. Ao escrever sobre um Grupo e mais um trabalho do qual me sinto parte a(fe)tiva há tantos anos, permito que meu olhar, meu corpo (forjado em vinte anos de balé clássico e aberto à dança contemporânea, sobretudo, pelo encontro com Monica) pense e sinta a movência e a ética/ estética como plataforma de um fazer artístico que me amalgama: poeta, dramaturga, bailarina, cineasta, mulher recifense professora e fincada no terreiro, nesta lama, nestas ruas, nestes rios e nestas pontes, a contemplar o voo destas árvores e morando em uma casa com plantas e gatas/os, porque os arranha céus da verticalização violenta me sufocam.
Chegamos à noite de 31 de maio de 2024, à vivência de Caosmose dentro do Festival Palco Giratório, no espaço Rede Moinho da Ilha, do artista visual Sergio Altenkirch – mais um longevo parceiro de Monica -, que fica na Ilha do Recife, local conscientemente eleito para abrigar esta dança-manifesto-denúncia: uma síntese que é uma explosão. Aqui, neste espaço-casarão com um grande Iroko (árvore) dentro, com vegetação e ruínas de telhado e paredes, uma construção em derrocada (que Serginho ocupa como ateliê/ espaço para armazenar sua matéria-prima de trabalho, sucata que ele recria em artes visuais) os corpos das/os bailarinas/os do Experimental se convertem em manchas no chão, em seres que rastejam com lanternas na testa (Ratos? Mineradores? Vaga-lumes? Morcegos?). Somos literalmente movidas/os e atravessadas/os pela dança.
O público vai sendo conduzido pelas ocupações, pelas coreografias, pelas indicações sutis do Grupo e vai ver corpos tecnicamente muito potentes na execução vigorosa da dança, vai ver dramaturgia densa, vai se indignar ao compreender o abandono dos espaços da cidade em que vive; das/os artistas que insistem em criar/ sonhar e lutar por uma urbanidade que é de todo mundo. Como escreveu o poeta Carlos Pena Filho: “é dos sonhos dos homens que uma cidade se inventa”; temos cada vez menos gente nesta trincheira de sonhadores que seguem inventando cidades acolhedoras e possíveis para todes.
A sucata e as paredes do abandono são lixo e viram arte; o aquilombamento invoca na dança de Monica Lira, em um solo durante o trabalho, uma luz que vai apontando outros coletivos também desterritorializados que seguem em ação na cidade (placas são nomes grafados dessas/es artistas e instauram memórias contra o apagamento). Em Caosmose, são dançadas as relações humanas em sua violência intrínseca (os poderes seguem engendrando estratégias de necropolítica), mas também está pulsando ali nesta dança a generosidade, a solidariedade, o amparo. Relações interpressoais e amorosas que nos sustentam (sejam os casais, os vários arranjos de amorosidade e suporte afetivo), as dissidências de gênero, de corpos, de raça. Arte é grito e aponta para o sempre: o machismo, o feminicídio, a maturidade de seguir dançando aos sessenta anos, o urgente empretecer deste país. Tudo isso é matéria posta em movimento em Caosmose, o que se instaura como energia numa coletividade impregnada pelos poros. Destacam-se na potência da experiência cênica a música executada ao vivo e a luz de Beto Trindade (que é também uma assinatura a acompanhar a trajetória do Experimental e dança junto em tudo).
Ao final, há que ritualizar ainda mais, literalmente, e queimar o que precisa ser purificado. Formar plateia não é entreter; arte é política aplicada com ética e estética refinada, em dedicação ininterrupta. Monica Lira e o Grupo Experimental sabem disso. O público não pode mais ficar passivo em sua própria cidade que afunda, que marginaliza, que sufoca. É preciso que o coletivo se mova, que a assembleia se instale e as responsabilidades sejam assumidas em ação: O que você gostaria que desaparecesse do mundo? Sim, responda a esta pergunta, mas ela não é apenas retórica. Ela exige ação.
Arremato aqui, com palavras que mencionei em depoimento à importante e consistente jornalista dedicada à cultura Erika Muniz, em um perfil que ela escreveu sobre o Grupo Experimental para a Revista Continente, em janeiro deste ano: “ao mesmo tempo em que entranha nossas raízes no Recife, o Experimental é capaz de olhar do telescópio para outros lugares” e assim alarga olhares e afetos; move política, estética, pedagógica e eticamente as estruturas da arte como modo de viver e permanecer existindo.
Crédito das Fotos: Rasta no Cllick
As opiniões expressas nas resenhas publicadas neste blog são de responsabilidade exclusiva dos críticos que as assinam. O Sesc PE não se responsabiliza pelas opiniões, comentários ou avaliações feitas pelo autor, que são independentes e não refletem, necessariamente, a visão de nossa instituição.