Balé Popular do Recife: a tenacidade de 47 anos encenando o seu Nordeste imaginado
Pode parecer redundante, a um público pernambucano, mais especificamente recifense, apresentar a história do Balé Popular do Recife. Será? Talvez, nem tanto, se considerarmos que a apresentação à qual este texto se dedica aconteceu na noite de 17 de maio de 2024 e no contexto do Festival Palco Giratório (FPG), o qual reúne eventual e considerável plateia de fora da cidade e, até, do estado; aliás, destaquemos que o Festival volta a acontecer na cidade após um longo hiato de dez anos. Um primeiro “Salve” a este retorno do FPG! Voltemos ao foco: o Balé Popular do Recife, icônico na história da cultura pernambucana, tem a completar na próxima segunda-feira (20 de maio) exatos 47 anos de existência e atuação. Longevidade rara em grupos de criação artística em um Brasil que nem sempre olha para a arte como uma cadeia fundamental de economia e produção de cidadania. E boa parte da plateia talvez não tenha essa informação sobre a longevidade do grupo.
Fundado em 1977, pelo coreógrafo André Madureira (falecido em 2021), o Balé Popular do Recife tem em seu DNA, também, a proposta e o olhar estéticos do então secretário municipal de Educação e Cultura do Recife, o escritor paraibano Ariano Suassuna. Vê-se, desde já, as marcas de uma compreensão da cultura popular como um manancial de busca de identidade e produção simbólica de um nordeste esteticamente retrabalhado na tentativa de encontrar raízes ibéricas, medievais e de traduzir o pensamento de uma intelectualidade em busca de forjar a síntese de uma brasilidade. Neste caldeirão, portanto, entram as referências de grupos étnico-culturais indígenas e afrodescendentes. Ritmos como o maracatu (em seus vários baques), o caboclinho, a quadrilha junina, o boi e o frevo povoarão o imaginário dos trabalhos do grupo. André Madureira também foi criador de um método de dança denominado “Brasílica” (novamente em parceria com Suassuna), com o objetivo de divulgar o que compreendiam como folguedos nordestinos. Vale informar, ainda, que o Balé recebeu o título de Patrimônio Cultural Imaterial do Recife, em 2018.
Há que se destacar o quanto houve de esforço e dedicação da família Madureira, tanto no núcleo formado por André e sua esposa Angela Fischer, atual diretora do Balé; de sua filha Angélica Madureira (diretora artística), quanto dos outros filhos que se forjaram inicialmente no grupo (Deca e Angelo Madureira, ainda atuantes como artistas e radicados em São Paulo). Há ainda gerações de sobrinhas/os, netas/os que passaram e seguem no grupo. Sem falar nos irmãos de André; por exemplo, Antonio José (o Zoca), músico, também ligado a esta movimentação de produção estética ancorada na ideia de Suassuna ao forjar seu Movimento Armorial. Ou seja, a família Madureira está embricada de diversas formas na cultura. Destaquemos, ainda, que o Balé Popular do Recife se configurou como uma escola para gerações de corpos; bailarinas/os; brincantes; musicistas, fazendo de suas sedes o espaço para isso, e forjou plateias e olhares para além da cidade, ao circular dentro e fora do Brasil. Sim, há algo de quixotesco neste sonho de André Madureira que perdura há quase cinco décadas e sobrevive a seu criador, há que se aplaudir.
Quanto ao trabalho mostrado pelo Balé Popular do Recife nesta programação do Festival Palco Giratório, intitulado “Nordeste, Dança e Música Irresistível”, encontramos a essência dessas décadas de atuação e uma síntese da concepção de espetáculo desenvolvida pelo grupo. Podemos constatar essas marcas na sinopse que divulga o trabalho como “um passeio panorâmico pelas principais manifestações artísticas e culturais de Pernambuco” e também como um “show que apresenta uma variedade de autos e folguedos populares encontrados nos ciclos festivos nordestinos, destacando-se no ciclo natalino com danças como Guerreiro (reisado), Dança dos Arcos (galante), Brincantes do Nordeste (bumba meu boi) e Cavalo Marinho”. Também são destacados na sinopse, e no que nos é oferecido no cardápio do espetáculo, os Caboclos de Lança e o Maracatu Nação (lidos pela linguagem do Balé Popular do Recife como o “ciclo afro brasileiro”) e as manifestações do “ciclo carnavalesco”: os Caboclinhos, a La Ursa e o Frevo.
A nomeação espetacular já nos aponta que se pretende encher os olhos da plateia, para que ela se veja grandiloquente como um Nordeste no qual as raízes populares encontram-se com o olhar da erudição em figurinos ricos de cores e adereços, através de um elenco numeroso de vinte e cinco bailarinos se revezando em cena, além de uma orquestra executando a música ao vivo no palco. Estes são dois aspectos a se louvar: a coragem de manter em cena um elenco tão numeroso e a força da música executada ao vivo, algo um tanto raro de se conseguir na cena artística brasileira (com os orçamentos tão minguados e precarizados).
A orquestra se posiciona ao fundo do Palco, com camisas de estampa colorida, com o coro de vozes ao lado. As danças vão sendo apresentadas em sequência: ora em solos buscando destacar algum virtuosismo da performance, ora em grandes grupos, a dar o tom de coletividade em que se forja a efetiva cultura popular (cujas raízes repousam em mestres e tradições/ transmissões em comunidades rurais e urbanas, em geral periféricas ou marginalizadas; como o cavalo marinho, o maracatu rural e seus caboclos de lança ou mesmo o frevo, cujos passistas foram no início do século XX associados à desordem social). Um traço bonito é a junção de corpos diversos, em formas e idades, ocupando a cena e dançando/ envergando adereços e figurinos. Há o momento em que o quarteto de vozes masculinas vem à frente do palco, na boca da cena, capitaneado pela voz feminina única entre eles. Ela irá comandá-los e provocar a plateia, em uma breve e humorística interação, a imitarem-na em sequências de palmas e pisadas no chão, propondo a adesão das/os espectadores à festa. Depois, retoma-se a apresentação das danças que se sucedem até um grande final, apoteose a esse caldeirão imagético que o grupo vem forjando há tantas décadas.
Há um sabor de folclórico, há uma atmosfera de tradição, há um desejo que se mantém de celebrar um olhar festivo, ufanista até, de um Nordeste colorido, vibrante, alegre, no qual a cultura popular se amalgama como uma espécie de brasão tradicional. A plateia experimenta, em uma hora, uma exibição e uma invenção deste Nordeste imaginado. Em tempos de decolonialidade, muitas/os podem não se mover pela proposição estética do Balé Popular do Recife e podem até enxergar nela um viés ideológico elitista ou mesmo algum laivo de estereotipia. Entretanto, não há como não aplaudir a tenacidade de manter-se tanto tempo perseguindo um fazer artístico e estético.
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