Assopradores de balão de todos os lugares uni-vos
Nunca 50 minutos foram tão poderosos. O reino criado pela Trupe Lona Preta, de São Paulo, parece distante do nosso, mas as opressões e as alegrias são bem próximas. Os trabalhadores seguem um regime puxado, têm uma rotina totalmente mecânica e vigiada, trocam sua força por alguns tostões e são estimulados a consumir no pouco tempo livre de que dispõem para que outras indústrias e outros trabalhadores tenham, por fim, do que se ocupar. “A Fábrica dos Ventos” é um lúdico manifesto, uma máquina de ameninar o tempo, capaz de traduzir pelo ritmo e graça da palhaçaria conceitos que a academia tem suado para explicar. O espetáculo é um misto de Marx e Engels e, ainda, de Adorno e Horkheimer para crianças.
Quatro palhaços no palco dão conta de um número bem maior de personagens. Alexandre Matos, Joel Carozzi, Sergio Carozzi e Wellington Bernado se dividem entre quem controla os meios de produção e quem detém a força de trabalho. Eles são mão de obra explorada, sim, mas são, também, uma coroa pomposa, com direito a um rei cheio de vontades e um exército subserviente. São poucos, mas se fazem de muitos. São indivíduo e massa. Constroem até uma rua movimentada e um cardápio variado de programas de televisão. “A Fábrica dos Ventos” tem tudo aquilo que se espera dos números puxados pelos palhaços, no picadeiro e no mundo, ancorado por uma dramaturgia corajosa, pelo risco de se fazer hermética ao público, e um trabalho musical excepcional.
Com direito a torta na cara, tapa na cara, muito jogo de trapaças, “A Fábrica dos Ventos” envolve o público da primeira à última cena. Na verdade, sem que sejamos devidamente informados, somos também personagens daquela história. Somos alucinados por bexigas ou balões ou bolas de assopro, consumidores desenfreados independente do tamanho e cor das peças, sem que atentemos para o fato de que aquilo pode ser, de algum modo, o pretexto ou a razão para a exploração de alguém. Os trabalhadores de “A Fábrica dos Ventos” perdem o fôlego e até a vida para encher balões horas e horas do dia, ao tempo em que sonham e lutam pelo direito de ter também um balão, de preferência bem estilizado, para poder chamar de seu.
Há quase 20 anos em atividade, a Trupe Lona Preta demonstra no espetáculo uma competência exemplar de técnicas circenses, tem um trabalho singular no encontro com a linguagem musical, mas sobressai pela coragem de enfrentar uma temática tão complexa, ainda mais considerando que tem as crianças como público prioritário. “A Fábrica dos Ventos” é profundo e sensível, é uma brincadeira leve e um alerta poderoso. Com graça, a montagem critica de modo contundente um mundo imaginário que também é o nosso. A alegoria da Trupe Lona Preta tem referências muito diretas ao nosso cotidiano. Do alerta de mensagens do WhatsApp à vinheta de acesso da Netflix, passando pelas dancinhas do TikTok, o reino de lá tão é tão diferente assim.
“A Fábrica dos Ventos” tem cenas hilárias e cenas com um traço violento também. Há trechos de embates físicos, até cruéis, nos quais fica mais acentuado a crítica à cultura do consumo. Uma bexiga com 50% de desconto é motivo de um conflito brutal, em que o “vencedor” ganha não só seu objeto de desejo como a realização de ter um concorrente a menos em sua jornada. Nesse mundo de valores duvidosos, até palhaços entristecem e são condenados à solidão. É isso, ao fim, que mobiliza a grande revolução que a Trupe Lona Preta convida sua plateia a participar. De nada adianta ficar só, mesmo quando se arrebata em promoção a bexiga dos sonhos. Ainda mais, quando se sabe que o rei, sem encher um só balão, tem uma verdadeira fortuna deles.
Com encenação de Alexandre Matos, Joel Carozzi e Sergio Carozzi e direção musical de Joel em parceria com Wellington Bernado, “A Fábrica dos Ventos” organiza uma visualidade fantástica e delicada. O espetáculo fala com as crianças com uma sinceridade e uma intimidade profundas, enquanto envolve adultos com maestria. “A Fábrica dos Ventos” é, sim, para todas as idades. É uma alegria cantar e brincar com o elenco, torcer e temer ao ritmo das trapalhadas. Melhor ainda é poder ser confrontado, com tanta poesia, diante de questões que têm conduzido nossas relações e nossas práticas há gerações. “A Fábrica dos Ventos” mostra que um outro mundo é possível. Um reino com um rei concentrando todos os balões só para si, à custa do fôlego de outros que não sabem se nunca vão possuir um balãozinho sequer, definitivamente, não é um lugar bom de se viver.
As opiniões expressas nas resenhas publicadas neste blog são de responsabilidade exclusiva dos críticos que as assinam. O Sesc PE não se responsabiliza pelas opiniões, comentários ou avaliações feitas pelo autor, que são independentes e não refletem, necessariamente, a visão de nossa instituição.