Balé Popular do Recife: a tenacidade de 47 anos encenando o seu Nordeste imaginado
Cavalo Marinho Boi Pintado Família Salustiano mostra sua força, mesmo em condições nada ideais


Coletivo de Olinda encanta adultos e crianças com peça de bonecos carregada de lirismo e boa música
Musical que homenageia Leci Brandão traz o seu legado familiar materno para revelar uma trajetória cheia de licenças poéticas e ancestralidades
Por Leidson Ferraz
Como uma oferenda emotiva de gente preta no palco, o espetáculo musical “Leci Brandão – Na Palma da Mão”, do Rio de Janeiro, que integrou a primeira noite de retorno do Festival Palco Giratório após dez anos sem o evento acontecer no Recife, faz uma justa homenagem à cantora e compositora carioca Leci Brandão. Ela, que está prestes a completar 80 anos de vida e 55 de carreira, incluindo uma intensa atuação política desde 2010 (atualmente cumpre o quarto mandato como Deputada Estadual em São Paulo pelo PCdoB), é um dos maiores nomes do samba brasileiro, responsável por sucessos como “Isso é Fundo de Quintal”, “Só Quero te Namorar” e a imbatível “Zé do Caroço”.
Com realização da Lapilar Produções Artísticas em parceria com a Palavra Z Produções Culturais, e pelas mãos de um diretor de teatro, cinema e TV sempre atento à representatividade negra nos palcos e nas telas, Luiz Antônio Pilar, que ainda divide a adaptação dramatúrgica com Lorena Lima, também assistente de direção e cenógrafa, e Luiza Lorosa, diretora de movimento, tudo construído a partir de uma pesquisa do jornalista Leonardo Bruno, a montagem veio ampliar a categoria do teatro musical biográfico de ícones da música popular brasileira (o Recife, por exemplo, já viu espetáculos dedicados a Tim Maia, Elis Regina, Clara Nunes, Cássia Eller, Cazuza, Elza Soares e Ney Matogrosso, entre outros), fazendo a plateia terminar, literalmente, na palma da mão. Afinal, permanecer parado ficou quase impossível.
Ainda que não traga uma maioria de canções de todo conhecidas do grande público (sim, estamos tratando de uma artista que, apesar da grandiosidade da sua obra, não tem um repertório tão difundido), é a força do samba quem permeia toda a cena, e os corpos dos espectadores reagiram bem aos instrumentos que lhe serviam de base, especialmente cordas (violões e cavaquinho, a cargo dos músicos Rodrigo Pirikito e Matheus Camará) e percussão (pandeiro, tamborim, congas, entre variados apetrechos rítmicos de Thainara Castro e Pedro Ivo). A direção musical certeira é de Arifan Júnior. Entretanto, durante 1h20, o que se viu foi uma licença poética a uma possível biografia, pois mais de uma vez, no embaralhar dos fatos narrados e vividos, uma frase vinha resolver problemáticas daquela história: “Mas isso é teatro…”.
Portanto, ninguém pense que a dramaturgia seguiu ao pé da letra o que, de fato, aconteceu. E é essa opção que me faz questionar trechos do que veio à cena ou simplesmente deixou de aparecer. Em primeiro lugar, é preciso que se registre que a trajetória da tímida menina de subúrbio que em meio aos estudos descobriu o gosto por compor música, ao ponto de usar o samba como sua maior arma, é permeada por referências aos orixás, pois desde pequena ela já acompanhava a mãe no candomblé. Assim, como num ritual de matriz africana, cercado por folhas de mangueira que servem como principal e belo elemento cenográfico daquele quintal-terreiro, é Exú quem abre o espetáculo, pronto para rir, deglutir e recontar histórias, inclusive a dela.
Em meio às inserções de relatos sobre outras divindades afro, especialmente Iansã e Ogum, que protegem Leci com sua espada e escudo, é Dona Lecy, com “y”, mãe da cantora e compositora que conhecemos, quem serve de fio condutor de quase todos os acontecimentos, transformando-se não só numa impulsionadora, mas também numa produtora de faz de conta da filha para uma viagem ao Japão que lhe serviu de virada na carreira artística. E é nessa relação entre mãe e sua cria que a narrativa se apoia, no quanto ambas se respeitavam e se influenciaram, inclusive para Leci ser quem é: uma mulher educada, gentil, militante, ainda que reclusa na sua intimidade. A canção “As Coisas Que Mamãe me Ensinou” cai como uma luva nesse trecho, afinal, ela é resultado daquele legado materno, desde a avó.
O pai, exigente, faleceu muito cedo e foi a mãe, servente de uma escola pública, quem criou a filha, ensinando-lhe a tradição familiar, ética e religiosa. Pronta para ser porta-voz dos excluídos e sem se deixar estacionar, a compositora, que depois se torna cantora, abraça as oportunidades com afinco, seja no programa de TV do Flávio Cavalcanti, sua primeira grande chance de seguir ao estrelato, ou na luta para derrubar preconceitos e entrar para a história como a primeira mulher a integrar a ala dos compositores da Escola de Samba Mangueira, já como sambista de gabarito. Tamanho selo de qualidade faz o grande Cartola convidá-la a acompanhá-lo no programa da TV Cultura, “Ensaio”. A carreira, então, deslancha.
Com uma discografia que reúne mais de duas dezenas de compactos, LPs, CDs e DVDs, Leci Brandão conheceu o sucesso, mas também enfrentou cinco anos sem qualquer nova gravação, logo após romper com uma multinacional que não lhe queria permitir um repertório autoral. Ainda assim, como “quem é do axé sabe a graça de esperar”, ela foi a primeira sambista no Brasil a conseguir gravar uma obra inteira com composições próprias. Todos esses episódios aparecem na cena, ora apenas narrados, ora vivenciados, por três atores-cantores, Tay O’Hanna e Verônica Bonfim, respectivamente Leci Brandão e sua mãe, Dona Lecy, e Sérgio Kauffmann, desdobrando-se em variadas personagens míticas e humanas, a exemplo de Exú, da figura paterna de Leci, de Cartola e do líder comunitário Zé do Caroço, sempre a buscar empatia com o público. Os três intérpretes ainda dançam bastante, por vezes reproduzindo partituras corporais em repetição no falar das narrativas, além de cantarem muito bem.
Se o espetáculo segue uma linha de total afeto e carisma – até pela força da presença materna e da simpatia que a sambista Leci Brandão desperta na grande maioria das pessoas, apesar de certa sisudez que a marca, quais são, então, as restrições que apontei mais à frente? Em primeiro lugar, a necessidade de cenas de interação com o público, um risco grande, não nos momentos em que os artistas pedem para que o acompanhar de palmas se faça cada vez mais presente – na trilha do subtítulo da obra, uma frase também já recorrente nas apresentações da cantora –, nem na graça de dialogar com certos espectadores, mas especialmente na desnecessária ida à plateia para encontrar pessoas que saibam cantar a bela composição “Zé do Caroço”. De ágil e difícil letra, nem todo mundo pode acompanhá-la e, por pouco, a graça de um desconcerto não se fez.
Três outros pontos, ao meu ver, fragilizam a dramaturgia: o receio de tocar no desejo de Leci Brandão por mulheres (apesar dela ter se reconhecido lésbica ao jornal “Lampião da Esquina”, no final dos anos 1970, e composto a canção “Ombro Amigo”, abertamente homossexual), pois não há nenhuma cena ou nova personagem que possa desnudar tal aspecto. É verdade que existe uma brevíssima referência quando a jovem Leci engana a mãe, dizendo que uma canção de amor composta era para o pai, mas isso é pouco, afinal a temática é citada como algo importante na sua carreira (numa cena excessivamente didática, com um medley musical e apontamento de assuntos, sem nenhuma teatralidade, bem diferente do momento em que a mãe canta com a filha ao colo, exatamente a música que aborda a homossexualidade).
Alguém pode até argumentar que, na vida real, a própria Leci Brandão não escancara seus amores, mas se estamos tratando de um teatro cheio de liberdades poéticas à sua trajetória, por que reforçar tanto embotamento na questão da afetividade? Acho que os dramaturgos, talvez na esteira da própria homenageada, sempre tão reclusa sobre intimidades, se deixaram conduzir por certo pudor (ou seria receio da sua não aprovação?). Por fim, vale apontar que um outro elemento importantíssimo infelizmente cai como um paraquedas no enredo, sem qualquer preparação ou situação que nos faça compreendê-lo com maior afinco: a magnitude da atuação política da cidadã Leci Brandão, ao ponto de fazê-la chegar à Câmara dos Deputados de São Paulo por quatro vezes (somente em 2022, ela foi reeleita com 90 mil votos!).
Parlamentar dedicada à igualdade racial, ao respeito às mulheres, ao segmento LGBTQIAPN+ e às religiões de matriz africana, especialmente, acredito que tão significativo desempenho merecia um olhar mais apurado, detalhista mesmo, ainda que fosse pelo viés da própria mãe, que faleceu em 2019, aos 96 anos, mas a viu galgar cargos políticos desde 2004, quando a filha foi convidada pelo então presidente Lula para ser Conselheira da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, por dois mandatos, até 2008. Tudo bem que nenhum espetáculo pode dar conta de uma trajetória de vida, ainda mais aberta a espectros tão múltiplos, mas para que a festa-homenagem pudesse ser ainda mais vigorosa, no sentido de abordá-la por diferentes vieses, valeria a pena ter reforçado o conhecimento do público para esse perfil de líder que Leci Brandão ganhou, não só no samba, como também na presença política com o seu “aquilombamento da diversidade”, como intitula o seu gabinete político.
No entanto, nada disso invalida o resultado extremamente positivo de “Leci Brandão – Na Palma da Mão”, um musical sobre uma bamba do samba em sua ancestralidade, uma mulher preta que orgulha a todos nós. E as palmas, claro, acompanham e ecoam esfuziantes, como foi na grande e eufórica plateia do Teatro do Parque na quinta-feira 16 de maio de 2024, na abertura do tão aguardado Festival Palco Giratório no Recife. Detalhe: em março deste ano, o espetáculo – cuja estreia aconteceu em janeiro de 2023, no Rio de Janeiro – ganhou o 34º Prêmio Shell de Teatro, na categoria Direção, para Luiz Antônio Pilar, além de ter sido indicado nas categorias Ator (Sérgio Kauffmann) e Iluminação (Daniela Sanchez). Tudo compondo uma agradável roda teatral poética de puro samba.
Crédito das fotos: Simony Rodrigues.
Miro, Bibiu e seus mamulengos perdidos no descontrole de um espetáculo mal-acabado
Por Dib Carneiro Neto
Crítico convidado do Palco Giratório 2024
Pode-se dizer que foi um ‘esquenta-festival’. Mestre Miro dos mamulengos da cidade pernambucana de Carpina, conhecido como Miro dos Bonecos, apresentou-se ao ar livre no Marco Zerinho (Teatro do Parque), com seu espetáculo Mamulengo Novo Milênio, após o cortejo inaugural e antes da sessão oficial de abertura com os convidados do Rio homenageando Leci Brandão.
Mestre Miro esquentou o público no dia da abertura, mas não se pode dizer que fez um espetáculo teatral. A atração, se encarada como teatro, é cheia de problemas. Falta dramaturgia, falta ritmo, falta agilidade, falta humor, falta acabamento cênico, falta um montão de coisa. Mas se for encarada como uma manifestação de cultura popular genuína e espontânea, então merece nossos aplausos incondicionais. Eu aplaudi com gosto. Só que para ser show de mamulengos, e não peça de teatro, deveria ser mais curto. Daria seu recado brevemente, objetivamente, artisticamente, encantaria a todos e pronto. Mas… estende-se por tempo demais.
Mestre Miro – sem ser um homem letrado de boas palavras – conversa simploriamente com a plateia, justifica a precariedade, conta que quase desistiu, apresenta seus bonecos e instrumentos musicais adaptados – a gente até se emociona com seu jeito, sua simplicidade honesta e com tal figura tão emblemática e representativa dessa arte dos mamulengos, tombada como patrimônio. Ele conta até que um livro está sendo preparado sobre ele na Suécia. Merecidamente. Um artesão de muita grandeza, um criador de bonecos de causar admiração no mundo todo. Um resistente amante e praticante da arte popular nordestina.
O fato é que ele veio abrir um festival que não se realizava havia dez anos – e se criou a expectativa de que fosse bom teatro também, além dessa força naif (ingênua) tão inegável. E não é bom teatro. Para começar, não se entende por que o título é Mamulengo Novo Milênio. Nada é dito ou revelado sobre isso. E o que transcorre à nossa vista é muito esquemático e repetitivo. Chega a ser cansativo.
Por exemplo: com a participação de Bibiu (filho do saudoso Mestre Saúba) nas vozes e na manipulação, os mamulengos surgem em uma cena na área da singela empanada (aparato que determina a área de representação), depois saem e Miro canta uma música. Em seguida, os mamulengos voltam à empanada com outra cena, Miro canta outra canção. E assim por diante. Logo, esse ‘mecanismo’ estrutural, por assim dizer, fica totalmente escancarado e não há mais surpresas quanto ao andamento do espetáculo. Já ficamos sabendo que há uma canção intercalando cada cena. Isso é pobre como dramaturgia. Seria preciso pensar em algo mais novo, com maior frescor de narrativa.
Outro exemplo de falta de boa dramaturgia: as cenas com mamulengos são repetitivas e com os velhos chavões de teatro infantil, como sumir com um personagem e ficar perguntando para as crianças onde ele foi. Isso é rançoso, velho, ultrapassado. Mesmo assim, quer usar uma vez no seu espetáculo? Tá bom, ainda mais se forem bonecos. Mas repetir? Criança na plateia gritando “ele foi ali”, “ele foi pra lá”, não é um recurso inteligente de participação. Não é. É uma facilidade, que escancara a fragilidade do texto, que precisa apelar para essa gritaria nada espontânea, forçada nas crianças.
Aliás, o espetáculo todo chama as crianças a participar com respostas. Bibiu, o manipulador dos mamulengos, pergunta coisas o tempo todo. Pronto, instala-se a gritaria. Isso é uma ilusão de interatividade, não é uma interação de verdade, porque é fácil, forçada, boba. Muitas e muitas vezes já escrevi isso em minhas críticas: não mexa com quem está quietinho, se você não vai dar conta de domar as feras depois. O que se viu na apresentação de Mestre Miro e Bibiu Bonequeiro foi uma gritaria de crianças querendo interferir na história, querendo ser mais engraçadas que os artistas – e os adultos passivos (pais, avós, tios) achando tudo muito bonito, sem pedir limites. Uma lástima. Isso não é teatro, muito menos teatro bom. Criança precisa interagir de forma saudável com um espetáculo, interagir de forma inteligente. À certa altura, virou um show histérico de auditório – e o festival não merecia isso em sua abertura.
Bibiu está microfonado e, ainda assim, grita muito. Para que o microfone então? Poderiam pensar em tirar esses microfones do espetáculo. Há ideias boas no transcorrer disso tudo, como Mestre Miro fazendo com uma latinha a sonoplastia da cena do bebê balançando na rede ou apresentado à plateia o balde-bateria de reciclagem. Ou, ainda, quando o pescoço do boneco cresce feito girafa. Mas isso, mesmo sendo bom, se perde em meio à falta de ritmo do espetáculo, desgovernado pelo excesso de gritaria das crianças.
O melhor de tudo, o que mais funciona, o que mais fica em nossa memória, é o número final, em que Miro dança com sua parceira – grande boneca acoplada/encaixada/amarrada em seus pés. Uma graça, uma perfeição de ritmos e movimentos, uma delícia de ver. A boneca faz gestos, mexe a cabeça, rebola o quadril – como se fosse gente de verdade. Uma demonstração de engenho e arte, técnica e talento. Só que, de novo, eles demoram demais na cena e a repetem desnecessariamente.
Ou seja, o resumo de tudo é que há em Mamulengo Novo Milênio muito material ingênuo artístico de primeira grandeza, que nos comove e nunca pode morrer no teatro infantil, mas que precisa urgentemente das mãos firmes de um diretor e de um dramaturgo, de fora do grupo, para dar uma organizada, criar ritmo e leveza, contar uma história bem contada. Quem sabe no próximo Palco Giratório. Eu iria adorar revê-los repaginados.
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