Caboclinho Canidé de Goiana ocupa a Praça do Campo Santo no FPG e isso ainda diz pouco: o mover de um território cujas raízes originárias e afro-brasileiras são um modo de existir
É em Goiana, na Mata Norte do nosso estado, que nasce o Caboclinho Canidé, patrimônio vivo de Pernambuco, fundado por mestre Antônio Galdino da Silva em 15 de julho de 1971. A cidade de Goiana se destaca não só economicamente, dentro do estado, mas sobretudo como manancial e berço de artistas e expressões culturais as mais diversas e consistentes. Lá nasceram, também, por exemplo, o artista Zé do Carmo (outro patrimônio vivo de Pernambuco), pintor e escultor em cerâmica, e o compositor e músico Juliano Holanda, entre tantas e tantos. De Goiana também, outro patrimônio vivo de Pernambuco é o grupo Pretinhas do Congo, que a certa altura foi capitaneado por Dona Carminha (Maria do Carmo Monteiro) com apenas dez anos de idade (filha do do estivador Antonio Manoel dos Santos, o Pirrixiu, espécie de fundador do brinquedo). Ou seja, trata-se de um território historicamente habitado pelos indígenas das etnias Caeté, Tabajara e Potiguara, mas onde também resistem as tradições diasporizadas pela escravização de povos negros. Não podemos esquecer que também é de um distrito de Goiana que vem um dos sentidos mais materializados de resistência e enfrentamento: as heroínas Mulheres de Tejucupapo, que derrotaram soldados holandeses com panelas e colheres de pau.
Apesar do genocídio e das violências estruturais e sistêmicas tanto dos corpos quanto das culturas negra e indígena, segue (r)existindo como símbolo e marca da força das raízes desses povos originários um brinquedo e uma manifestação, no sentido de festa política e música, dança, corpos em conjunto que é o caboclinho. Esta manifestação se configura como um território do encontro de duas matrizes ancestrais e duas tradições, duas forças e modos de se organizar em coletividade, de viver e ver terra e mundo: essa brincadeira (séria, divertida e importante ao mesmo tempo) dos caboclos recoloca na gira as memórias do encontro e do amálgama entre indígenas e os povos afro-diaspóricos e afro-brasileiros que forjaram o nordeste pindorâmico (Pindorama sendo jeito mais próprio nosso de dizer deste país-continente nomeado pelo invasor como Brasil).
Dito isso, ainda vale acrescentar que o Caboclinho Canidé de Goiana tem em sua performance artística muito mais do que apenas um espetáculo a deslumbrar olhos e entranhar-se como música e movimento pelo corpo de quem presencia a brincadeira, o grupo é um dos responsáveis por reverberar e manter a tradição e resistência através da manutenção deste brinquedo e da prática religiosa da Jurema (cuja entidade espiritual é o Caboclo) e da cerimônia conhecida como “Caçada do Bode”, atividade religiosa celebrada na madrugada do domingo de Carnaval, como forma de preparação das comunidades indígenas e dos próprios caboclinhos.
A formação do Canidé é mista, composta por homens e mulheres (além de crianças) e, ao que pese o binarismo desta informação, ela não é nada irrelevante, quando se considera que há nas tradições o que se exaltar, mas também o que se contestar e manter em movimento para combater cristalizações e outras formas refratadas de opressão. Por exemplo, o já sabido machismo que subjaz em tantas e tão diversas formas de organizações sociais, independente de geografias, classe econômica ou social. E no Canidé de Goiana, a devoção hoje se faz à Canidé mulher, com uma diretoria que, desde 2007 – com o falecimento do seu fundador, mestre Galdino -, é exercida por Severina e Denise, suas filhas.
O que se viveu (não se trata apenas de ver um espetáculo) na tarde deste sábado, 25 de maio de 2024, dentro da programação do Festival Palco Giratório do Sesc Pernambuco foi o Canidé se concentrando na rua Treze de Maio, em frente à unidade do Sesc Santo Amaro, e iniciando o desfile até ocupar o terreiro em roda aberto na Praça do Campo Santo, com o espaço do Palco para os músicos. O desfile acontece com a formação de duas filas, que se deslocam executando as evoluções ou manobras (como é chamada a dança dos caboclinhos) acompanhando o ritmo e o compasso marcado pelo som das preacas (instrumento composto por arco e flecha, geralmente, de madeira Quiriri ou Imbiri, que produz um som breve e seco em uma vibração percutida), num rápido movimento de levantar e abaixar, com rodopios nas pontas do pés. As preacas são adereços da dança, mas não só: estão presentes nas manifestações religiosas do Candomblé e da Jurema, notadamente no toque de Oxossi. Também serve como marcador e instrumento de comunicação para as manobras o apito, usado como toque de comando do cacique, seja a indicar começo e fim do brinquedo, seja a conduzir as alas. Há, além das presenças dos caciques, ou cacicas, o pajé e o porta-estandarte, que apresentam o grupo ao público, durante suas performances festivas.
Quem estava na Praça do Campo Santo testemunhou os olhares tão significativos de respeito do porta-estandarte ao estandarte que carrega; a troca de sorrisos entre as caboclas e os caboclos; as crianças brincando com a seriedade e o divertimento pertinentes à própria noção do brincar; a consciência de ritmo, de compasso, de velocidade e a complexidade dos passos (que na execução do grupo parece simples). A indumentária, feita principalmente a partir do uso de penas de pássaros e aves (pavão, ema, faisão e galo) e o brilho da vestimenta (por conta das lantejoulas, miçangas e pedras) é mais uma festa de cores, numa visualidade que conversa com outros brinquedos da zona da mata, como o maracatu rural. Voltando à música do caboclinho: é basicamente instrumental, guiada pela flauta (já mencionada, que é o instrumento fundamental para chamar e receber os Caboclos), acompanhada por gaitas; e o baque é composto por caracaxás (maracás ou exeres), conhecidos como mineiro; além do tarol e do atabaque.
A trajetória do Canidé é de excelência (para os que gostam deste adjetivo em que pese ele ser absolutamente dispensável para os que compõem este caboclinho): em 2019, consagrou-se campeão do Concurso de Agremiações do Carnaval do Recife (Grupo
de Acesso); em 2020, foi campeão do Grupo II e foi Vice-campeão do Grupo I, em 2023, importante reconhecimento estratégico para receber o título de patrimônio vivo, que permite algum recurso financeiro para a sobrevivência de um manancial de arte, cultura, espiritualidade e resistência que deveria ser assim visto e considerado não só no âmbito de um grupo específico, mas da cultura cabocla, indígena e afro-indígena. Afinal, para cada uma dessas nações, a medida certamente é outra: viver o cultivo desta tradição é seguir se entendendo como identidade, pertencimento, cosmovisão. E tudo isso é ritualização da vida, do espírito, da matéria e de sua transcendência. É a escrita viva, secular e religiosa de uma outra história, contada e dançada por quem não sucumbiu à colonização.
O Festival Palco Giratório acerta ao compreender arte e cultura como espaços, como territórios de pertencimento e não somente como um conjunto de jargões pretensamente técnicos de supostas linguagens artísticas e ao colocar em convívio fazedores de teatro, de dança e de circo contemporâneos com quem também mantém viva a gira da cultura, que alguns ainda chamam de popular, ignorando que não tem ela outro nascedouro (a tal feita nos salões elitizados é mais fruto do tédio e, por vezes, de uma certa arrogância pré-burguesa e pré-romântica que é herança da frustração de nobreza dessa classe). O ofício de artista é tão sinônimo da metáfora freiriana (do mestre Paulo Freire) de chão de escola que se materializa no chão batido de areia (ou até no asfalto) onde batem o pé e traçam seus passos as caboclas e os caboclos. E todos esses elementos de dança, música, indumentárias em conjunto captam a atenção do público onde quer que esteja, sendo festa pros olhos e fogo pra aquecer e lembrar de onde viemos. Viva o Caboclinho Canidé de Goiana!
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RUDIMAR CONSTÂNCIO
26/05/2024 @ 12:03
Renata Pimentel, que escrita linda e entendimento da cultura de tradição…estou maravilhado com a profunda imersão de sua crítica ao universo dos caboclinhos… parabéns querida.
Caboclinho Canidé de Goiana
26/05/2024 @ 14:07
Nós que fazemos o Caboclinho Canidé de Goiana, na pessoa da Mestra Denise Galdino, filha do saudoso Mestre Antônio Galdino e fundador do Canidé, agradecemos imensamente as palavras e ficamos extremamente felizes por saber que estamos sendo enxergados e com muito trabalho, conseguindo levar a nossa cultura para lugares nunca antes imaginados, elevando o nome do Caboclinho Canidé de Goiana para além do nosso território, da nossa cidade!!! Canidé VIVE!!! 🏹
AMZX NFC
03/06/2024 @ 09:09
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