Teatro
Uns bonecos do cacete! ou A poesia e a graça de Lorca num teatro que explicita a arte de manipular
Imagens
gentilmente cedidas pelo fotógrafo João Fernando Bonfim.
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As opiniões expressas nas resenhas publicadas neste blog são de responsabilidade exclusiva dos críticos que as assinam. O Sesc PE não se responsabiliza pelas opiniões, comentários ou avaliações feitas pelo autor, que são independentes e não refletem, necessariamente, a visão de nossa instituição.
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Miro, Bibiu e seus mamulengos perdidos no descontrole de um espetáculo mal-acabado
Por Dib Carneiro Neto
Crítico convidado do Palco Giratório 2024
Pode-se dizer que foi um ‘esquenta-festival’. Mestre Miro dos mamulengos da cidade pernambucana de Carpina, conhecido como Miro dos Bonecos, apresentou-se ao ar livre no Marco Zerinho (Teatro do Parque), com seu espetáculo Mamulengo Novo Milênio, após o cortejo inaugural e antes da sessão oficial de abertura com os convidados do Rio homenageando Leci Brandão.
Mestre Miro esquentou o público no dia da abertura, mas não se pode dizer que fez um espetáculo teatral. A atração, se encarada como teatro, é cheia de problemas. Falta dramaturgia, falta ritmo, falta agilidade, falta humor, falta acabamento cênico, falta um montão de coisa. Mas se for encarada como uma manifestação de cultura popular genuína e espontânea, então merece nossos aplausos incondicionais. Eu aplaudi com gosto. Só que para ser show de mamulengos, e não peça de teatro, deveria ser mais curto. Daria seu recado brevemente, objetivamente, artisticamente, encantaria a todos e pronto. Mas… estende-se por tempo demais.
Mestre Miro – sem ser um homem letrado de boas palavras – conversa simploriamente com a plateia, justifica a precariedade, conta que quase desistiu, apresenta seus bonecos e instrumentos musicais adaptados – a gente até se emociona com seu jeito, sua simplicidade honesta e com tal figura tão emblemática e representativa dessa arte dos mamulengos, tombada como patrimônio. Ele conta até que um livro está sendo preparado sobre ele na Suécia. Merecidamente. Um artesão de muita grandeza, um criador de bonecos de causar admiração no mundo todo. Um resistente amante e praticante da arte popular nordestina.
O fato é que ele veio abrir um festival que não se realizava havia dez anos – e se criou a expectativa de que fosse bom teatro também, além dessa força naif (ingênua) tão inegável. E não é bom teatro. Para começar, não se entende por que o título é Mamulengo Novo Milênio. Nada é dito ou revelado sobre isso. E o que transcorre à nossa vista é muito esquemático e repetitivo. Chega a ser cansativo.
Por exemplo: com a participação de Bibiu (filho do saudoso Mestre Saúba) nas vozes e na manipulação, os mamulengos surgem em uma cena na área da singela empanada (aparato que determina a área de representação), depois saem e Miro canta uma música. Em seguida, os mamulengos voltam à empanada com outra cena, Miro canta outra canção. E assim por diante. Logo, esse ‘mecanismo’ estrutural, por assim dizer, fica totalmente escancarado e não há mais surpresas quanto ao andamento do espetáculo. Já ficamos sabendo que há uma canção intercalando cada cena. Isso é pobre como dramaturgia. Seria preciso pensar em algo mais novo, com maior frescor de narrativa.
Outro exemplo de falta de boa dramaturgia: as cenas com mamulengos são repetitivas e com os velhos chavões de teatro infantil, como sumir com um personagem e ficar perguntando para as crianças onde ele foi. Isso é rançoso, velho, ultrapassado. Mesmo assim, quer usar uma vez no seu espetáculo? Tá bom, ainda mais se forem bonecos. Mas repetir? Criança na plateia gritando “ele foi ali”, “ele foi pra lá”, não é um recurso inteligente de participação. Não é. É uma facilidade, que escancara a fragilidade do texto, que precisa apelar para essa gritaria nada espontânea, forçada nas crianças.
Aliás, o espetáculo todo chama as crianças a participar com respostas. Bibiu, o manipulador dos mamulengos, pergunta coisas o tempo todo. Pronto, instala-se a gritaria. Isso é uma ilusão de interatividade, não é uma interação de verdade, porque é fácil, forçada, boba. Muitas e muitas vezes já escrevi isso em minhas críticas: não mexa com quem está quietinho, se você não vai dar conta de domar as feras depois. O que se viu na apresentação de Mestre Miro e Bibiu Bonequeiro foi uma gritaria de crianças querendo interferir na história, querendo ser mais engraçadas que os artistas – e os adultos passivos (pais, avós, tios) achando tudo muito bonito, sem pedir limites. Uma lástima. Isso não é teatro, muito menos teatro bom. Criança precisa interagir de forma saudável com um espetáculo, interagir de forma inteligente. À certa altura, virou um show histérico de auditório – e o festival não merecia isso em sua abertura.
Bibiu está microfonado e, ainda assim, grita muito. Para que o microfone então? Poderiam pensar em tirar esses microfones do espetáculo. Há ideias boas no transcorrer disso tudo, como Mestre Miro fazendo com uma latinha a sonoplastia da cena do bebê balançando na rede ou apresentado à plateia o balde-bateria de reciclagem. Ou, ainda, quando o pescoço do boneco cresce feito girafa. Mas isso, mesmo sendo bom, se perde em meio à falta de ritmo do espetáculo, desgovernado pelo excesso de gritaria das crianças.
O melhor de tudo, o que mais funciona, o que mais fica em nossa memória, é o número final, em que Miro dança com sua parceira – grande boneca acoplada/encaixada/amarrada em seus pés. Uma graça, uma perfeição de ritmos e movimentos, uma delícia de ver. A boneca faz gestos, mexe a cabeça, rebola o quadril – como se fosse gente de verdade. Uma demonstração de engenho e arte, técnica e talento. Só que, de novo, eles demoram demais na cena e a repetem desnecessariamente.
Ou seja, o resumo de tudo é que há em Mamulengo Novo Milênio muito material ingênuo artístico de primeira grandeza, que nos comove e nunca pode morrer no teatro infantil, mas que precisa urgentemente das mãos firmes de um diretor e de um dramaturgo, de fora do grupo, para dar uma organizada, criar ritmo e leveza, contar uma história bem contada. Quem sabe no próximo Palco Giratório. Eu iria adorar revê-los repaginados.
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