Cavalo Marinho Boi Pintado Família Salustiano mostra sua força, mesmo em condições nada ideais
Por Leidson Ferraz
Num dia de chuva constante, a coordenação do Festival Palco Giratório poderia ter cancelado a atração, mas preferiu mantê-la e a transferiu da Praça do Campo Santo para o hall de entrada da lateral do SESC Santo Amaro, próximo à saída do Teatro Marco Camarotti. E foi num piso nada ideal, espremido entre os variados espectadores que ali se acotovelavam, de diversas faixas etárias, inclusive, que o Cavalo Marinho Boi Pintado Família Salustiano (sim, o nome é grande assim mesmo) se exibiu na sexta-feira 17 de maio de 2024, exalando a força da arte popular de raiz, mesmo em condições nada agradáveis. No formato arena, como deve acontecer no terreiro de chão batido em que essa manifestação tem seu berço – dando “chuva de poeira” no povo –, quatro músicos num canto executavam a trilha sonora a permear toda a apresentação.
Crédito
da foto: Thalyta Ignnus
Ao som do ganzá (ou mineiro), da rabeca, do pandeiro e do bage de taboca (espécie de reco-reco onde se arranha um som), dança, teatro, música e poesia transfigurada em loas e toadas nos fizeram ver a beleza do Cavalo Marinho, brincadeira inventada na Zona da Mata pernambucana pelos trabalhadores da cana-de-açúcar. O grupo em questão vem resistindo desde 1968 e foi lançado pelo Mestre Salustiano, músico, rabequeiro, artesão e brincante que nos deixou em 2008, um dos grandes representantes da cultura popular pernambucana. Desde então, quem está à frente da turma é um dos seus vários filhos, Pedrinho Salustiano, de 44 anos, também artista múltiplo, já tão mestre como o pai.
Na realidade, quase todos ali são parentes, filhos, netos ou até bisnetos do Mestre Salu. Além de Pedrinho, entre os músicos está o seu irmão Dinda Salu (tocando rabeca). Imaculada, irmã dos dois, faz de tudo um pouco e é uma das brincantes. Seu filho, João Pedro, de 12 anos, encarna o nêgo Mateus, provocando risadagem na parceria com o amigo Henrique Diniz, de 21 anos, este na pele do também irrequieto Bastião, as duas figuras trabalhadoras – quase escravos – que vêm bagunçar a brincadeira. Ainda há mais gente: Gabriel Salustiano, de 18 anos, é filho de Imaculada e veste o Boi; suas tias Mariana e Betânia são galantes, assim como Gilmar Leite, esposo desta última e pai de Débora, de 11 anos, uma das pastorinhas. A outra pastorinha é Iara, de apenas 10 anos, filha de Pedrinho.
É nesse emaranhado familiar, sem esquecer a participação dos outros músicos amigos (Maurílio Lilo, Cristiano e Jemerson), todos vindos do bairro de Cidade Tabajara, em Olinda, que a perpetuação de um patrimônio cultural nosso vai acontecendo, com saberes e práticas transferidos já há três gerações. Como festejo próprio do ciclo natalino, performances corporais, musicais e dramáticas se sucedem, com roteiro que, independentemente dos improvisos, segue uma lógica própria de enredo cênico. O Cavalo Marinho é, então, uma festa que é permitida pelo Capitão Marinho (daí a corruptela que dá no seu nome), o dono do terreiro, na intenção de celebrar o Divino Santo Rei do Oriente, Jesus.
A questão é que dois de seus negros contratados no trabalho da cana-de-açúcar bagunçam o coreto, até ao ponto de ser chamado um Soldado – com seu espadão imponente – para pôr ordem na casa. Munidos de bexigas de boi e com o seu matulão às costas (folhas de bananeira presas ao corpo), os dois atrevidos investem contra as autoridades e tudo acaba em certa pancadaria – que invariavelmente gera risos e risco no público –, ou seja, numa subversão festiva ao poder instituído, além de toda a devoção ao momento de nascimento do Menino filho de Deus, incluindo a sua própria Ressurreição, simbolizada pelo Boi que aparece e renasce sempre.
Falas, cantos, trupés (pés ligeiros com pisadas fortes) e danças são quase hipnotizantes, principalmente pela agilidade das pernas nos tremeliques, rodopios, descidas e levantes, investidas contra o outro para puxá-lo à “roda do samba” (o famoso e belo mergulhão), num jogo de simbologias que fazem jus ao corte da cana, à força e intensidade da vida em meio ao canavial, à pulsação da alegria em conjunto. Passos da capoeira, do caboclinhos, do coco e do frevo também estão presentes, numa evidência da influência afro-ameríndia nessa mistura popular.
Destaque ainda para as máscaras e figurinos, com cores berrantes, brilhos, franjas, lantejoulas, fitas, flores de papel, espelhos distribuídos por chapéus e golas, uma indumentária de extrema beleza. Isso sem contar com os arcos na dança evolutiva em caracol, tudo artesanalmente feito pela própria equipe, exímia em ressaltar a paleta de arco-íris. É realmente impactante de se ver e acompanhar, mas, como homem de teatro, preocupado com a cena, eu não poderia deixar de apontar algumas fragilidades que observei.
Pedrinho Salustiano, com o seu vozeirão, corpo maleável e extrema simpatia, conduz muito bem a equipe, mas precisa prestar maior atenção à interpretação que seus pupilos estão dando às figuras (para não dizer personagens). É claro que os dois garotos na pele dos negros Mateus e Bastião têm muito a crescer, na dinâmica entre eles e o público, principalmente, mas um detalhe se faz urgente corrigir: as falas ditas quase que para si, sem projeção vocal suficiente, nem a verdade que nos faria rir ainda mais das suas presepadas.
O mesmo valendo para as outras participações da equipe nas loas ditas, em certo momento apenas na direção dos músicos, sem fazer com que todo o “terreiro” ouça e possa desfrutar da poesia que ali está contida. É preciso explorar mais a doação de cada um e cada uma para com os espectadores, na intenção de que os diálogos e cantos possam ser compartilhados com maior desenvoltura, sem timidez, como na dança já se faz tão presente.
Concebido originalmente para cerca de 30 componentes (segundo me disse um dos músicos) e contando com mais de 70 personagens, apenas dez brincantes, além dos quatro músicos, puderam estar nesse pequeno trecho apresentado no Festival Palco Giratório e que foi retirado das mais de oito horas de duração original do brinquedo popular. No entanto, já deram um gostinho do quanto pode ser divertida e estimulante uma vivência com o Cavalo Marinho, transitando do duplo sentido ao caráter religioso e mítico, mas sempre nos impulsionando ao lúdico e à brincadeira no verdadeiro e imprescindível coletivo popular. Pura alegria da vida.
As opiniões expressas nas resenhas publicadas neste blog são de responsabilidade exclusiva dos críticos que as assinam. O Sesc PE não se responsabiliza pelas opiniões, comentários ou avaliações feitas pelo autor, que são independentes e não refletem, necessariamente, a visão de nossa instituição.