Dança imagética e musical que expressa o sentimento de pertencimento a uma ilha sertaneja onde o Samba de Véio é festa e identidade coletiva
Não há quem não saia do teatro sorrindo ou com vontade do corpo sacolejar ainda mais. Assim é o resultado de “Eu Vim da Ilha”, espetáculo com direção de Jailson Lima que amalgama a dança contemporânea à realidade de uma comunidade ribeirinha do São Francisco, mais precisamente a Ilha do Massangano, distante 12 km do município de Petrolina, no Sertão pernambucano. Valorizando uma diversidade de corpos no Grupo de Dança do SESC Petrolina, todos os seus doze integrantes só adentram no “terreiro cênico” (o palco nu, iluminado por varal de luz gambiarra) após o público esperá-los em expectativa. O encontro, ao som de batuques e canto ao vivo, já é pura festa.
Fruto de mais de dois anos de pesquisa naquela localidade, “Eu Vim da Ilha” faz desfilar uma sucessão de belas imagens com um corpo coletivo que se constrói e se reconstrói o tempo todo, sem deixar de dar protagonismos na medida certa. Um principal elemento cenográfico é utilizado: tamboretes de madeira, médios ou bem pequenos, que os bailarinos brincantes manipulam com maestria, ora como assento, ora como instrumento musical feito com couro de bode ou de boi. Mas muitas outras possibilidades surgirão a partir dessa relação com o objeto, afinal estamos tratando de uma proposta de dança que também é signo visual e sonoro em constante devir.
Nesse processo contínuo de fluidez, narrativas distintas aparecem: vão da preparação artesanal do banco às disputas por ele em meio à roda, até a chegada dos músicos (com pandeiro, triângulo e agogô) e sambadeiros à gira.
No cantar, não faltam explícitas devoções religiosas que misturam santos da Igreja Católica e divindades de matriz africana; além da referência principal ao grande rio que cerca a vida dos ribeirinhos. Aliás, pela malemolência do vai e vem constante, as águas e quem com elas trabalham – só se chega na região pela ajuda de barqueiros – são um elemento bastante presente, como também peixes em cardume, plantas aquáticas e seres mitológicos em composição quase mimética.
Cada corpo ali se desdobra em variados movimentos, particulares ou coletivos, sejam solos, duos ou trios – os dois últimos mais fortes – numa dinâmica que impressiona pela diversidade de gestos, rodopios, quedas, ondulações, torções. Mas é o pulsar do conjunto, que constantemente se agrupa, quem realmente chama a atenção. A montagem também cativa por transbordar cotidianos, afetos e respeito, com seus integrantes pedindo licença para entrar, vadiar e se despedir (há no final, inclusive, um sutil desesperançar pelo sentimento de se estar ilhado, com desejos de transbordar as ilhas que há em si). No entanto, aos aplausos finais do público, o samba se mostra novamente contagiante.
De caráter frontal, tudo se estabelece por sorrisos, gingados e refrões, valorizando a relação direta do elenco com a plateia, ora a convocando para bater palma como acompanhamento rítmico, ora adentrando no seu espaço para lhe ofertar cachaça, o grande estimulante dos adultos nesse dançar/cantar/batucar, cujo ápice é a cena em que a bailarina Júlia Gondim equilibra uma garrafa de Pitú na cabeça, como acontece no brinquedo popular. E nessa explosão do rebolado em semicírculo, não faltam umbigadas (homens e mulheres em contato íntimo nas barrigas) e trupés (pisadas fortes no chão), tudo virando congraçamento pelo Samba de Véio, manifestação criada em alegria à colheita pelo povo da Ilha do Massangano há mais de 100 anos, que encanta, contagia e enternece, já que o caráter sexualizado foi amenizado nessa proposta.
O figurino concebido por Maria Agrelli acompanha a brincadeira com graciosidade, apostando em saias e calças em uníssono para moças e rapazes, numa sobreposição de cores de retalhos de chita. Um dado curioso é que, diferente de outros espetáculos de dança contemporânea onde os bailarinos têm que fazer seus pés quase flutuarem do chão, sem o mínimo barulho, neste o pisar duro e forte compõe a trilha sonora. Sônia Guimarães, responsável pelas belas canções originais, soube ainda inserir pontuais depoimentos dos moradores da Ilha, trechos de cantos e vozes recortadas que se repetem e causam ruído. Consegue transitar do frege sonoro à mansidão da água, num belo trecho em que o rio, quando em total destaque pela luz eficiente de Carlos Tiago, parece atento à farra que ia se desenrolar.
No entanto, o grupo precisa urgentemente retomar o contato com a diretora musical para que possa conduzi-lo à afinação. Há um descompasso no canto em conjunto, com muita gente desentoada, claramente sem saber onde e como colocar a voz sob a base instrumental pré-gravada, especialmente nos números finais. Apesar desse deslize que fere trabalho tão harmônico, “Eu Vim da Ilha” é uma excelente criação artística com etnografia em liberdade e que nos instiga a adentrar numa ilha/rio/terreiro de experiência sensorial, tamanha a coesão entre performance dançada, musical e espaços físico-temporais em profusão. Sons, movimentos e visualidades que ondulam, navegam, são travessia, mas também chão batido, território, cultura, ancestralidade, memória, pertencimento, identidade.
O elenco, cuja entrega é bem estimulante, atualmente é formado por Sandriele Gomes, Jaidson Sá, Amon Souza, Natália Agla, Wagner Damasceno, Pedro Lacerda, Pedro Creslley, Tárcio Tavares, Beatriz Ribeiro, André Vítor Brandão, Júlia Gondim e Alexandre Santos, apenas os três últimos da montagem original que estreou em 2011. O Grupo de Dança do SESC Petrolina há 29 anos vem desenvolvendo um trabalho contínuo e de extrema relevância, formando jovens bailarinos constantemente.
Crédito das fotos: Guilherme Lostt.
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DREX
29/06/2024 @ 10:13
Parabéns pelo excelente trabalho, continue assim!