De Roraima para Recife, a curiosa tradição de um palhaço inca
Quando o espetáculo infantil é sem palavras, à base de mímica e expressão corporal, é comum ouvir na plateia crianças instando os pais: “Mas o que ele está fazendo?” Aconteceu algumas vezes na sessão da tarde de domingo (19), do Festival Palco Giratório, no Teatro Marco Camarotti, onde se apresentou a peça ‘Mar Acá’, vinda de Boa Vista, em Roraima. Numa das vezes, o pai respondeu: “Ele está nadando.” Ao que o filho retrucou: “Mas esse chão não está parecendo água.”
O que o teatro quer da gente é o exercício constante da imaginação. Sejamos nós crianças ou adultos, não importa. Era água, sim, um marzão de água – bastava imaginar. O Grupo Locômbia Teatro de Andanças, que existe desde 1984 e criou esse espetáculo em 1992 (para homenagear os 500 anos do “descobrimento” da América), é especializado na dramaturgia do chamado teatro gestual. Instiga o público a desvendar seus espetáculos – mudos de palavras, mas eloquentes na narrativa.
‘Mar Acá’ é assim. Vai parecendo sem ação no começo, desconexo na intenção, mas logo uma coerência narrativa se estabelece, personagens se firmam e o fio da meada se estica na direção de uma história bem contada. Um palhaço ameríndio se envolve em aventura marítima, esbarra em personagens das lendas populares e acaba virando peixe e indo morar no fundo do mar. Ah, não foi assim que você entendeu? Melhor ainda. É o que o teatro gestual provoca na gente, uma profusão de interpretações, um mar de possibilidades. Criamos o nosso enredo.
Curupira e Iara marcam presença na aventura, assim como uma raposa trapaceira, que engana o palhaço jogando dados alterados. Um palhaço é menos esperto do que uma raposa? Curiosa escolha dramatúrgica. Palhaços costumam ser ingênuos, mas safos, espertalhões. Levam a melhor ao final. Não aqui. Ele acaba até sem roupa, de tanto que a raposa o espolia.
Curiosa é também a decisão de chamar para o palco, nas cenas interativas, apenas adultos. Isso vai totalmente na contramão do que se faz habitualmente nas peças de horários vespertinos e censura livre. Não é julgamento fazer esse comentário. É apenas curioso. A cena funciona muito bem e a plateia ri muito, inclusive as crianças, vendo marmanjos e senhoras rebolando e gesticulando no palco, em vez de serem elas a participar.
Achei bem louvável a ideia de fazer os personagens saírem de dentro da tela ou uma moldura vazada (ou seria uma empanada?). Eles caminham por ali na forma de bonecos e saem já crescidos no corpo dos atores. Isso demonstra um cuidado a mais na concepção da encenação, uma vontade de surpreender as crianças brincando com linguagens.
O Grupo Locômbia é uma família. O diretor e palhaço é o pai (Orlando Moreno). Um monge misterioso, Iara e a raposa são feitos pela mãe (Beatriz Brooks). Quando os dois já eram um casal e já tinham formado esse grupo, conceberam – durante uma das turnês – o filho Shanti Sai, hoje um adulto, no papel do Curupira. E os três são músicos no espetáculo: o pai toca saxofone, a mãe toca clarineta e o filho, flauta.
Há um valor adicional na peça vinda de Roraima, conforme Orlando explica para a plateia ao final: apresentar às crianças um palhaço que foge dos padrões europeus ou mesmo americanos, o palhaço da cultura ameríndia, chamado Lhamichu. Orlando Moreno o incorpora como na tradição, até com o mesmo chocalho pendurado na altura do umbigo, que usava para chamar as lhamas. A família conheceu a graça do palhaço inca em uma viagem para as montanhas do Peru. Assim, ‘Mar Acá’ se configura em mais um acerto na diversidade de atrações escolhidas no Recife pela curadoria do Palco Giratório. Já vimos tanta coisa diferente, o que será que ainda vem por aí? Acompanhem.
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