Estética vistosa e dramaturgia corajosa marcam o ‘Pequeno Príncipe’ da Cênica Cia.
Meu santo Exupéry, valei-me. Imagine você quantas vezes um crítico veterano, com mais de 30 anos de carreira, teve o privilégio de ver pelos palcos o personagem do Pequeno Príncipe. Uma delícia. Vi dezenas pelo Brasil afora e agora mais um, em Pernambuco. Obrigado, meu santo Exupéry.
‘O Pequeno Príncipe’, como todos sabemos, não é uma peça de teatro. É um livro muito famoso, no mundo inteiro, e no Brasil sempre lembrado porque era citado como leitura de cabeceira das candidatas a miss de antigamente, nos concursos de beleza (hoje tão anacrônicos e incorretos, mas resistentes). Agora, o lugar do principezinho é no teatro para crianças. E, por ser um livro, cada adaptador cuida de transformá-lo na sua peça de teatro. São incontáveis as versões.
Acontece que a forma na qual o livro foi escrito – o pequeno príncipe vai encontrando um personagem de cada vez – favorece que a grande esmagadora maioria dessas produções e adaptações use no teatro a estrutura conhecida em que o protagonista fica em cena e os coadjuvantes vão surgindo e desaparecendo, um a um. Isso exige uma habilidade muito grande da direção, já que a surpresa não virá na forma do andamento da narrativa. Para que o espetáculo não fique modorrento e sem ritmo, é preciso atrair o interesse do público de outras formas, porque todos já sabem que sai o reizinho, entra a rosa, sai a rosa, entra a raposa e assim por diante até o final. A trama é essa mesmo, a jornada do menino e pronto.
Toni Rodrigues, da Cênica Cia de Repertório, criada em Recife em 2001, foi bastante corajoso. Como autor e diretor, não abriu mão de nenhum personagem do livro, nem daqueles que comumente os adaptadores descartam, alegando que uns são mais próprios para as crianças do que outros. Toni manteve todos e, além disso, intercalou a peça inteira com o jogo beckettiano de assumir para o público que, no palco, há atores contando uma história. Então, volta e meia o elenco surge caracterizado de crianças, e não como os personagens do livro. Quando vão virar os personagens do livro, tiram seus figurinos de dentro de malas azuis e os vestem à frente do público. Isso foi inteligente, porque a garotada se identifica com o jogo e se aproxima da proposta, mas, por outro lado, isso aumentou ainda mais o número de cenas do espetáculo.
Não é nenhum pecado. Ninguém precisa abrir mão de sua criação só porque previamente se supõe que a juventude de hoje não aguenta muito tempo concentrada em uma trama teatral. É preciso enfrentar essas premissas, em vez de aderir às facilitações. Mas quando as plateias estão lotadas de escolas – e era o caso – fica muito difícil domá-las, não no sentido de castrá-las ou reprimi-las, mas no sentido de fazer com que fiquem o tempo todo interessadas pelo espetáculo.
Todos que vão ao teatro para crianças e observam o comportamento das plateias sabem que criança tem determinado comportamento quando está em família e outro quando está em um grupo numeroso de coleguinhas da escola. Foi assim que vi a sessão da tarde de sexta-feira (31) no Teatro Luís Mendonça. Alunos irrequietos, muitos adultos ao celular, conversando sem cerimônia, crianças pedindo para ir ao banheiro ou querendo também usar o celular, mães ralhando, coordenadores coordenando… tudo durante a peça. É da vida. Em maior ou menor grau, acontece em qualquer canto do Brasil, seja qual for o espetáculo.
O fato é que, no caso de O Pequeno Príncipe da companhia recifense, nada disso tirou o brilho do palco, porque havia talento, consistência, firmeza na proposta. Alguns meninos e meninas fruíram mais do espetáculo do que outros e outras? Sim. Acontece. Mas o que importa que fique registrado aqui é que se trata de uma peça extremamente feliz em suas escolhas, sobretudo as escolhas estéticas. O que a gente vê do começo ao fim é um desfile bem cuidado e bem-acabado de figurinos (Luciano Pontes) e adereços, por exemplo. Cada peça (objeto ou vestimenta) é mais criativa do que a outra. A personagem da rosa ganha roupagem nada óbvia. Sombrinhas e guarda-chuvas ganham capas ricas, coloridas, belas em texturas e estampas. Produzem um efeito cênico arrebatador e que nos transporta para um mundo de imaginação, que é a proposta anunciada pelos atores desde o começo: viajar na imaginação.
Outra ótima escolha foi ter dois músicos ao vivo (Douglas Duan e Arnaldo do Monte), ao lado do palco, fazendo toda a trilha e toda a sonoplastia à vista das crianças. Quando o menino ao meu lado percebeu pela primeira vez o músico cantando, foi de arrepiar. Ele se virou para a mãe, com os olhos brilhando, e perguntou: “Mãe, você viu? É ele que está cantando!” Parece banal ressaltar essa cena em uma crítica, mas imagine o resultado disso na vida de uma criança. É pura educação musical, ou iniciação musical, sem precisar do tom de sala de aula. O teatro existe para que as crianças compreendam as infinitas possibilidades de se expressar artisticamente, criativamente. E mesmo que elas não virem artistas quando crescerem, tudo isso que lhes foi disponibilizado no teatro da infância as fará se tornarem adultos melhores, mais humanistas, mais preparados para lidar com qualquer tipo de questão.
A história do Pequeno Príncipe é danada para fazer os encenadores caírem nas armadilhas da lição de moral. Duas das frases mais conhecidas da literatura mundial saíram justamente desse livro de Antonie de Saint-Exupéry: 1) Tu te tornas responsável por aquilo que cativas. 2) O essencial é invisível aos olhos. Com base nisso, nessas duas frases tão conhecidas, o risco de querer pregar é muito grande. Felizmente, a dramaturgia da Cênica Cia. cuidou para que o texto se revelasse muito mais abrangente do que apenas o que se tornou difundido.
É sempre encantador, por exemplo, o momento em que o aviador mostra seu desenho para o príncipe e esse enxerga no papel a cobra que engoliu o elefante, coisa que nenhum adulto foi capaz de perceber na infância do aviador, reprimindo nele a vocação para o desenho. O principezinho entendeu o desenho porque é criança e ainda não perdeu sua capacidade de imaginar. Mais adiante, quando ele pede o desenho de um carneiro, e o aviador desenha ‘apenas’ uma caixa, o príncipe ‘vê’ o carneiro dentro da caixa, ao que o aviador comenta: “Eu mesmo já cresci, porque não consigo mais ver os carneiros dentro das caixas.” Que bela metáfora do livro mantida na peça. Todos aqueles adultos na plateia, ligados no celular durante espetáculo tão sensível, jamais conseguiriam enxergar os carneiros nas caixas. Jamais. “Como gente adulta é estranha”, exclama várias vezes o pequeno príncipe. Sim, garoto, a plateia estava mesmo lotada de gente grande bem estranha, insensível e despreparada para qualquer tipo de jogo de imaginar. Felizmente, havia também muitas e muitas exceções. Felizmente, existem companhias como a Cênica que resistem e insistem em querer mudar esse quadro.
Gosto demais também que se mantenham os momentos em que o principezinho demonstra não saber o significado de algumas palavras. Ele pergunta: O que é admirar? O que quer dizer efêmeras? O que quer dizer cativar? Essas também não são apenas perguntas banais. Elas estão ali para que as crianças se identifiquem com essa fase dos questionamentos, a fase das descobertas, a fase em que a curiosidade gera crescimento.
Que beleza que é também o momento em que o príncipe sentencia a seguinte pérola: “Os adultos têm essa mania de querer explicação e as crianças precisam explicar tudo para eles.” É uma inversão proposital da ordem natural das coisas, assumindo que os adultos é que precisam que as crianças lhes expliquem o mundo. E aí vem o melhor de tudo: a reclamação de que adultos sempre perguntam as mesmas coisas, sem imaginação nenhuma. Nunca perguntam às crianças “de que cor é sua voz?” Ou: “você coleciona borboletas?” O mundo não seria muito melhor se a curiosidade dos adultos pelas crianças fosse dessa natureza? Um estado de poesia constante. É isso que propõe a peça da Cênica Cia.
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