Mineiros do Maria Cutia buscam renovar os sempre parecidos roteiros de shows musicais infantis
Existe no Brasil um filão artístico que é bastante numeroso: grupos que fazem canções autorais infantis e se apresentam quase sempre no mesmo formato, qual seja, cada canção é antecedida por textos, brincadeiras, diálogos divertidos entre o elenco. Intercalam texto e música o tempo todo. Essa, quase sempre, é a estrutura de roteiro nos shows infantis de música – e muitos teimam em dizer que isso é teatro, por causa dessas ‘quase cenas’ que se criam entre um e outro número musical. Minas Gerais é farto nisso. Recentemente fui avaliador de projetos de artistas mineiros, para crianças, e constatei: metade dos inscritos na categoria teatro infantil – talvez até mais do que a metade – eram grupos fazendo música para crianças. Minas sempre foi um Estado muito musical, para nosso puro deleite, e era natural que isso se estendesse também para o cancioneiro infantil.
Mas não temos a obrigatoriedade de revolucionar formatos o tempo todo. Há grupos oportunistas e nada criativos? Há. Aos borbotões. Mas também há muita gente boa, usando esse formato batido da melhor forma possível, com muita competência, muito talento, renovando com propriedade o repertório infantil para além dos clássicos. Na época da reclusão pandêmica, vi de forma online um encantador Sarau Musical (era esse o nome do espetáculo), do grupo Maria Cutia, de Belo Horizonte. Fiquei extasiado e emocionado. Era o formato de sempre? Era, mas como eles são bons no que fazem! E como compõem encantadoras letras com ritmos variados!
Agora, no Festival Palco Giratório 2024, de Recife, Maria Cutia surge presencialmente com outro espetáculo de caráter musical, ‘Mundos’, trazendo um subtítulo explicativo: ‘Uma Viagem Musical pela Infância dos Cinco Continentes’. Quem viu – e o Teatro Marco Camarotti, no Sesc Santo Amaro, estava abarrotado de gente, incluindo cadeiras extras em plena segunda-feira à tarde – saiu de lá hipnotizado por tanto acerto, tanta afinação, tanta felicidade cênica. Eu fui um desses espectadores embevecidamente cativados.
A ideia do subtítulo está toda lá. Sete países, de cinco continentes, são contemplados com canções infantis típicas, defendidas com garra por quatro atores (Mariana Arruda, Leonardo Rocha, Hugo da Silva e Dê Jota Torres) e dois músicos (Evandro Heringer e Vitim Nascimento). Eles renovaram o formato, diga-se. Desta vez não há textos nem esquetes intercalando e ilustrando as canções previamente, preparando os números musicais, por assim dizer. Não. Eles simplesmente cantam e encantam.
Ou quase, porque isso não significa que não há uma dramaturgia. Existe um jogo cênico muito bem pensado e praticado pelo sexteto mineiro. Placas coloridas, com os nomes dos sete países (Benim, França, Tonga, Indonésia, Japão, Colômbia e Holanda), designam qual canção virá a seguir. Mas, antes, a cada intervalo de país para país, há uma brincadeira diferente para escolher qual dos quatro atores vai buscar a placa e revelar o país para a plateia. As crianças ficam num frisson maravilhoso, querendo logo ler a próxima placa. A ideia é sensacional, brilhante. Tão simples, mas tão cênica e funcional. Algo, de fato, precisava existir entre as canções, para não virar só um recital. Maria Cutia achou um jeito diferente do que tem sido feito em profusão no seu Estado natal.
Unidunitê, Lá em cima do piano tem um copo de veneno, bambalalão… são algumas das brincadeiras entre eles, para fazer esse ‘sorteio’. Pura ludicidade usada de forma inteligente, remetendo, inclusive, à infância dos adultos ali presentes. É um espetáculo que contempla as famílias inteiras, por sua pulsão de alegria, seu clima de festa, seu propósito de comunhão em torno de boas músicas infantis mundiais. Que bela pesquisa!
Mariana Arruda emociona a cada nota, com sua voz hipnótica afinadíssima. A concepção cenográfica de Leonardo Rocha é fascinantemente inspirada no mapa-múndi, com uma versátil estrutura octogonal de rodinhas, ao centro do palco, ornada por pinturas incríveis de Rai Bento. Os figurinos de Luiz Dias, à base de retalhos coloridos, retratam uma infância estilizada e combinam à perfeição com os adereços de madeira usados em vários formatos, como peças do quebra-cabeças geométrico Tangram. A direção de Eugenio Tadeu é detalhista, posto que há sete países a serem homenageados e isso demanda mudanças constantes na atitude cênica do elenco.
Gosto de perceber, por exemplo, que – mesmo sendo canções de sete países – há uma vinheta musical dando unidade a ‘Mundos’ e que aparece a cada início de novo bloco, interpretada de formas variadas. Gosto de observar, também, que a canção francesa, a certa altura, ganha um ritmo acelerado de revolução das barricadas. Sem contar a divertida coreografia criada especialmente para ela. Gosto de notar, ainda, que os atores à mesa, batendo os dedos impacientes, não estão esperando a comida chegar, mas a música começar. Outro tipo de alimento. E assim por diante. São detalhes, são cuidados. Panos esvoaçantes no Japão, narizes de palhaço para a Colômbia, ventilador soltando ‘neve’ para a Holanda, pratos e talheres de alumínio para Tonga.
Só uma correção: não é uma peça musical totalmente sem texto falado, como eu escrevi antes. Sim, há um único momento em que há texto no espetáculo: na hora do Japão, quando os quatro atores falam (um trecho cada um) sobre como nasce a Flor de Lótus. É lindo e rápido. Logo a música retoma o protagonismo.
Só para não dizer que não ‘impliquei’ com nada, na cena da refeição musical, quem busca a comida e a serve aos outros é a única atriz. A mulher no grupo. Ok, é como se fosse a mãe, mas quem disse que é tarefa só de mãe? Seria melhor evitar essas reproduções antigas de papeis num espetáculo tão incrível.
Ao final, bem, eles espertamente fingem que é um final, pois retomam a peça após os aplausos e fazem a plateia dizer qual país está faltando: Brasil, é claro. Nessa hora, esse arremate emocionante sai completamente do óbvio e nos enternece. Poderiam, nesse tributo brasileiro, surgir com qualquer linda canção infantil bem conhecida, clássica, e fazer todo mundo cantar junto. Mas não. Maria Cutia é um grupo que quer mais – e sabe fazer mais. Os quatro atores juntos tocam um mesmo violão (as crianças vibram!) e cantam algo autoral, preparado especialmente para ‘Mundos’, com um refrão que diz: “Se a gente lá no fundo é cada canto do mundo…” É uma letra que resume tudo o que se passou no espetáculo. Uma beleza, um brinde, um bônus extra.
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Milsa Gomides
21/05/2024 @ 12:51
Já vi o espetáculo em BH. É de fato maravilhoso! Vc descreveu lindamente o que acontece.
Dirceu Lelis de Moura
21/05/2024 @ 22:38
* Sou fã do grupo Maria Cutia! Não vi o espetáculo “Mundos: Uma Viagem Musical pela Infância dos Cinco Continentes”, mas pela descrição de Dib Carneiro Neto (jornalista, escritor, editor), posso dizer “Não vi, mas já gostei”. Parabéns, Dib! Parabéns Maria Cutia!
Nadir José da Silva Monteiro
21/05/2024 @ 23:58
O espetáculo é maravilhoso, realmente o GRUPO MARIA CUTIA, sabe encantar uma plateia.