Skip to content

1 Comment

  1. Marcondes Gomes Lima
    24/05/2024 @ 18:26

    Sobre uma crítica atropelada pelo desconhecimento

    Estou “lascado”, como dizem por aqui: escrevendo uma tese, sem poder largar os batentes de trabalho, seja na Universidade (mesmo em greve) ou fora dela, seja como professor ou como artista. Faço essa distinção de funções e papeis, embora embaralhe tudo, inclusive a tese e a vida. O tempo escoa de forma vertiginosa e se realizo uma tarefa, duas ficaram ainda por fazer. Mas ontem aconteceu algo que não consegui ignorar e aqui estou eu criando um desvio de tempo, ocupando inclusive aquele que não é meu e sim de você que pode estar lendo o que aqui escrevo. É textão. Então que me sigam os fortes.

    Tem muita gente que não sabe, mas o geminiano aqui, quase com ascendente em gêmeos, aquele que precisa de uns pares de clones para dar conta das invencionices nas quais se envolve, estreou um espetáculo chamado “Hélio, o balão que não consegue voar”. A obra nasceu no dia 21, terça-feira passada. Isso aconteceu dentro da retomada local do Festival Palco Giratório, promovido pelo SESC Pernambuco. Um evento que retorna, depois de um jejum de dez anos, com uma programação louvável que inclui espetáculos, debates, publicação de apreciações críticas, processos formativos e o Seminário Nacional SESC de Teatro para as Infâncias.

    O olhar crítico de Dib Carneiro Neto sobre o espetáculo Hélio foi publicado no dia seguinte à apresentação. Dib é jornalista, dramaturgo e crítico de teatro que tem dado grandes contribuições para o fazer e o pensar a produção cultural para a criança na seara teatral brasileira. Sua crítica aponta certeiramente as fragilidades ainda existentes na obra recém-nascida, vislumbra qualidades e conquistas futuras. Estão ali a perspicácia, a postura criteriosa, a coerência estruturada ao longo de suas décadas de experiência.

    Diante de suas palavras eu fiz aquele exercício de deixar o Narciso de lado e isso aconteceu sem esforço. Não sou praticante ferrenho do método ancestral havaiano Ho’oponopono, mas sei do verdadeiro poder do “sinto muito, me perdoe, te amo e sou grato”. De verdade! Aqui não há laivo de ironia. Então aproveitei a oportunidade para ler de frente para trás as outras críticas, publicadas diariamente desde o início do citado festival. Tive uma infeliz surpresa ao me deparar com a crítica do mesmo Dib sobre a apresentação do Mamulengo Novo Milênio, capitaneado pelo Mestre Miro e com participação do seu filho e do Mestre Bibiu dos Bonecos. Não reconheci ali nada do que apontei acima. Fiquei pasmo, estatelado. Reli várias vezes tentando entender e encontra justificativa para tanto disparate. Na noite de 17 de maio de 2024, abertura do Festival eu estava lá, vi o espetáculo que aconteceu no jardim do teatro do Parque. Já assisti o Novo Milênio em melhores dias e com mais fulgor. Apesar disso não enxerguei ali o mesmo que o crítico. Duas cabeças, dois mundos, não é mesmo?

    Eu sei que o exercício da crítica é tão ou mais arriscado do que aquele da criação artística. Vejo ele também como um exercício poético. Lidar com nossa subjetividade e com a subjetividade alheia requer cuidado redobrado, ainda mais se em jogo está a fruição estética. No meu entendimento a crítica, seja de qual natureza for, é uma prática que não deve ser feita nas carreiras, da noite para o dia. Para não sair sapecada e sapecando autor e objeto em foco, ela precisa de tempo de maturação, de um olhar não complacente e generoso. E coitados daqueles que veem uma obra à noite e no dia seguinte já devem apresentar seu arrazoado de ideias e impressões. É péssimo dizer, mas senti pena. Por tudo. Pelos mestres postos na berlinda, pelo Festival numa saia justa, pelo autor literalmente se expondo daquela forma. Lamentei principalmente pelo desregramento crítico, a hibris estruturada sobre a ignorância.

    Depois dos muitos giros que os estudos teatrais deram, tendo o conceito de performance se expandido naquilo que enxergamos agora como terreiros interartísticos, quando as fronteiras entre linguagens são esfumaçadas cada vez mais, quando as próprias noções de linguagem são postas em questão, é preciso estar muito seguro para, diante de um fenômeno cênico posto na programação de um festival de teatro, dizer que não se trata de um espetáculo teatral. Fazer uma afirmação dessas é coisa muito séria. Pressupõe muitas descredencializações e marginalizações, ao meu ver desnecessárias. Fiquei pensando, pela enésima vez sobre qual a função da crítica. Qual postura deve manter o crítico mesmo diante das maiores fragilidades de um trabalho artístico? A crítica é julgamento ou espaço para análises e problematizações? Qual o espaço a ser dado ao valorativo e ao especulativo?

    No segundo parágrafo do texto o autor afirma: “A atração, se encarada como teatro, é cheia de problemas”. Imediatamente pensei tratar-se realmente de um caso em que eu vi uma coisa e o crítico viu outra. Mas na sanha de acertar os ponteiros da bússola dos outros e não os seus próprios, ele completa: “Falta dramaturgia, falta ritmo, falta agilidade, falta humor, falta acabamento cênico, falta um montão de coisas”. E ai me perguntei: O que então faltou ao crítico? Ao meu ver careceu de informação, escasseou conhecimento, o saber e a sabedoria ficaram rarefeitos no enfrentamento do desafio.

    Tudo piorou na sentença seguinte quando ele solta “Mas se for encarada como uma manifestação de cultura popular genuína e espontânea, então merece nossos aplausos incondicionais.” Realmente eu gostaria que me fosse oferecida uma definição de “cultura popular”, de “genuína” e de “espontânea”, dentro desse contexto apontado. E uma explicação sobre os “nossos aplausos incondicionais” serem ofertados caso os artistas e suas obras se encaixem nessa moldura apontada. Fiquei zoró, feito uma vez em que outra criatura crítica disse que uma obra minha era “uma bela forma sem conteúdo”.

    Eu gostaria mesmo de uma elucidação sobre o que é “show de mamulengo” em contraposição ao que pode ser dito como “peça de teatro”. Sobre o comentário feito quanto à duração da apresentação que deveria ser “mais curta” eu já imaginei o sujeito sendo torturado lentamente num daqueles cada vez mais raros “shows de mamulengo” que, ao sabor da interação com o público, chega a atravessar muitas horas, varar tardes e noites. Eu costumo rir de nervoso, mas não aconteceu isso.

    Afirmar que o mestre “conversa simploriamente com a platéia”, que “justifica a precariedade”, que “conta que quase desistiu”, que “apresenta seus bonecos e instrumentos musicais adaptados”, é de uma insensibilidade que excede o aceitável, ao menos para mim. É uma demonstração de que a pessoa não estava realmente escutando o que aquele artista esteve a dizer. Ele expressava, sem amarras e com toda a honestidade, a emoção de estar sendo reconhecido, recebido num lugar e num tipo de evento do qual muitas vezes é excluído por ser quem é por fazer aquilo que faz e como faz. Mas o crítico deixou de dizer e refletir sobre isso que foi textualmente falado pelo Mestre. Assim como também deixou de perceber que ali não estavam “bonecos e instrumentos adaptados” e sim artefactos criados, inventados, poetizados por um artista. Não pude deixar de observar a utilização do advérbio até – “… a gente até se emociona com seu jeito, sua simplicidade honesta”, “Ele conta até que um livro está sendo preparado sobre ele na Suécia”. Gelei muitas vezes lendo e relendo o texto ao qual me refiro, até diante de um simples, porém significativo, “até”. E sinceramente me pergunto: por que o até? O que sua presença revela?

    Antecipei algo que constatei a seguir e exclamei para mim mesmo: Agora deu! A pessoa está querendo ensinar um mamulengueiro a como fazer seu mamulengo? Vi então que a ignorância iria descambar e passar dos limites mesmo. “Pra começar” Mamulengo Novo Milênio, não é título de espetáculo. É o nome de batismo do mamulengo do Mestre Miro. Dib precisaria saber disso para não levantar o questionamento sobre a ausência apontada na frase “Nada é dito ou revelado sobre isso”. Pra começar, não é razoável para crítico algum se arvorar a dizer tão enfaticamente o que é bom teatro e o que não é bom teatro pura e simplesmente segundo seus parâmetros pessoais. E ele aperta com força e repetidas vezes essa mesma tecla. Ouso dizer que isso é imprudente e improducente, pode resvalar (e ao meu ver resvalou) para o tendencioso, para o preconceituoso e para o excludente. Por melhores que tenham sido as intenções do autor não foi um bom caminho esse que tomou.

    Sobre a adjetivação da criação do mestre como sendo esquemática, repetitiva, cansativa, o que pode ser dito? Que assim será para todos os olhares enviesados ou embaçados postos sobre ela? A construção dramatúrgica no mamulengo é mesmo esquemática e existem razões para que assim seja. É episódica, rápida, sem mergulhos em construções psicológicas ou enredos complexos, porque nasceu na rua, na feira, envolta num espírito de festa, para um público barulhento e muitas vezes de passagem. Isso não pode ser tomado como demérito, assim como também não deve ser tomada a repetição. Sobre o cansativo, curioso é que eu não vi e nem fiz parte de uma plateia enfadada. E olha que razões não me faltaram para, naquele dia, estar me sentindo cansado. Mas não por conta do mamulengo.

    Eu acredito que Dib criou muitas expectativas sobre as atrações apresentadas no dia da abertura e fiquei com a impressão de que não existiria mamulengo algum da face da terra capaz de o deixar satisfeito. Ele também brandiu o seu diapasão de certezas próprias com muita força. Mediu o que viu com uma régua que não era capaz de mensurar aquilo. E é lamentável.

    Quando no quinto parágrafo ele passa a exemplificar suas percepções sobre o que definiu como cansativo vai descrevendo, como demérito,
    os elementos estruturais da própria dramaturgia do mamulengo e que anteriormente disse inexistir. Puro desconhecimento. Os mamulengueiros chamam de passagens aquilo que nós chamamos de cena. O que o público assiste são episódios curtos, passagens de figuras. Entre tais passagens eles cantam loas. Através da música comentam a cena ou apresentam personagens. Uma estrutura que, guardadas as diferenças e contextos, também se viu no espetáculo oficial de abertura do festival: o musical Leci Brandão – Na Palma da Mão. Esse “”mecanismo” estrutural, por assim dizer” não está ali no mamulengo para frustrar ou garantir surpresas. Literalmente quase perdi o queixo quando o crítico sugere que “Seria preciso pensar em algo mais novo, com mais frescor de narrativa”. Qual a noção de tradicional ele deixou de alcançar?

    Apesar da presença ontológica dos bonecos o mamulengo não é feito apenas para crianças. Quando o especialista em teatro para a infância se coloca à frente e ultrapassa o perspicaz crítico ai a coisa entorna e vem afirmações que me soaram inequivocamente ofensivas como: “não é um recurso inteligente…”, “…precisa apelar para a gritaria nada espontânea, forçada das crianças”, “não é uma interação de verdade, porque é fácil, forçada, boba”, “Uma lástima”. Realmente uma lástima ele estar falando desse modo sobre algo que desconhece e descontextualiza. Tanto quanto lançar o petardo “e o festival não merecia isso em sua abertura”. Culpabilizar os mamulengueiros por fazerem feio, por não rezarem a cartilha do teatro para as infâncias que ele tão bem e coerentemente defende? Responsabilidade dos organizadores que não o muniram de informações sobre a natureza daquele espetáculo teatral? Descuido com aquilo que se esvai da cabeça, sai através dos dedos e se transforma em documento? Aqui eu não vejo outra saída senão bradar que os mamulengueiros é que não mereciam isso. Nem do crítico e nem dos organizadores do festival, afinal estamos falando da difamação de um patrimônio imaterial, ou isso é pouco?

    O autor do texto deixa a cereja do bolo realmente para o final e lança uma sugestão: “… precisa urgentemente das mãos firmes de um dramaturgo, de fora do grupo, para dar uma organizada, criar ritmo e leveza, contar uma história bem contada”. Não sou muito na fila do pão da crítica teatral mas, afoito que sou, dou aqui uma sugestão a todas e todos, críticos profissionais ou não: quando estiverem exercitando o pensamento crítico, evitem afirmar que algo é bom ou ruim, que é ou não é, que presta ou não presta, principalmente se não conhecem aquilo que está posto em foco. A possibilidade de serem feitas colocações equivocadas, desrespeitosas, lastimáveis cresce exponencialmente se esse cuidado não for tomado. Foi o que vi e li. Crítica não pode ser confundida com veredicto.

    Eu rezo para que os afazeres do Mestre Miro (aquilo que tem tomado seu tempo como garantia de ganha-pão na próxima Fenearte) o poupem do dissabor de encarar essa dita crítica. Espero que Mestre Miro seja tão calejado quanto eu no que diz respeito á subjetividade dos olhares postos sobre aquilo que fazemos, sobre aquilo que somos e não sofra com essa paulada. Para quem tão sinceramente expõe em público que “pensou em desistir” diante dos revezes da vida, da desconsideração e do desrespeito à sua arte esse tipo de crítica pode se tornar uma pá de cal. Naquela noite em que ocorreu a referida apresentação entrevistei o mestre e, entre tantas histórias contadas e conhecimentos tão generosamente partilhados comigo, ele me falou que ao lado dele existe um exército. Um contingente de bonecos que lhe dão esteio e acima de tudo estão Deus e todos os santos. Escrevo isso para dizer que me alistei na tropa dele.

    Ao Mestre Miro eu quero dizer exatamente o inverso do que o crítico expôs: o que o senhor faz é teatro sim, é teatro de bonecos sim, é mamulengo dos bons. Mesmo que não seja considerado como tal por quem não conhece da missa o terço. Se alguém diz que falta um montão de coisas, lembre de todas e todos que já lhe disseram que sua brincadeira conta com um montão de outras tantas coisas que vão para além do ingênuo, do naif, do rústico, do pitoresco, do popular, do espontâneo e genuíno. O senhor não precisa fazer teatro de bonecos como eu faço, ou como o crítico acha que é melhor, para que as qualidades do seu trabalho e sua genialidade artística sejam reconhecidas. O brinquedo que o senhor batizou de Novo Milênio funciona como uma pequena máquina de guerra, afrontando o dito bem feito, o tal bem acabado, o exigido bom comportado, o politicamente correto, as normas sejam artísticas ou de outra natureza. Ele pode nos ajudar a entender que o virtuosismo artístico e o domínio técnico perdem feio para algo tão simples quanto brincar e viver a brincadeira. Continue mestre, seguindo seu próprio caminho nesse novo milênio afora, mantendo a tradição que ajuda a preservar e fazendo a plateia rir e gritar, seja ela composta por crianças ou não.

    Reply

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *