Nuvens de Pássaros: a tenacidade de revelar que todos os corpos dançam, ou quando a acessibilidade e o anticapacitismo se convertem em plataforma artística
O nome de Anderson Leão – bailarino, diretor artístico, coreógrafo, designer gráfico, produtor cultural – já nos diz de um sólido trabalho com a linguagem da dança em sua autonomia como parte das artes da cena e como espaço de quebra de paradigmas sobre o corpo. Foi fundador do nacional e internacionalmente já reconhecido grupo Giradança, em 2005 (que dirigiu durante 10 anos), o qual colocou Natal no mapa da dança contemporânea como referencial de excelência técnica e estética/ artística. E segue sua jornada como criador/ propositor dessa compreensão de que todo e qualquer corpo pode e deve dançar, com autonomia estética, técnica e criativa. Assim, em 2018 encampa com Daniel Silva (bailarino e usuário de cadeira de rodas) a criação do Grupo Movidos (que resume a expressão “movidos a dança”), também sediado em Natal, Rio Grande do Norte.
A investigação dos (des)limites da dança na confluência dos mais diversos corpos encena pragmaticamente o anticapacitismo, desmascarando que os preconceitos sobre os corpos ideais para a dança, a cena ou quaisquer atividades artísticas (e de quaisquer outras naturezas) são fruto direto de uma sociedade despreparada e, ela sim, limitada e limitante. Ou seja, competência e tenacidade definem a personalidade artística de Anderson, cuja obra segue abrindo perspectivas à sensibilidade e educando, ética e esteticamente, a cena artística, o público e a sociedade.
No Grupo Movidos, então, continua a pesquisa com corpos diversos, com ou sem deficiência, buscando construir uma linguagem própria na dança contemporânea, ao investigar os limites (a transcendência a eles) e as potências/ especificidades dos corpos em suas diversidades e singularidades; além de explorar o encontro entre os corpos bípedes, videntes, ouvintes com corpos de pessoas com deficiência. No caso do elenco deste trabalho que circula no Palco Giratório em sua edição de 2024, intitulado Nuvens de Pássaros, o elenco é composto por cinco integrantes: Daniel Silva (como já mencionado, bailarino cadeirante e co-criador da companhia); Ariadna Medeiros; Jamaica Macedo (cadeirante); Michael Skimo e Rodolpho Santos – todos são colaboradores criativos. Anderson Leão assina a direção artística, além de responder pela mixagem de som, iluminação, design gráfico e, em co-criação, dividir a assinatura de figuro (com Luna Isaac) e cenário (com Tatiane Fernandes).
Segundo a sinopse fornecida pelo grupo, “Nuvem de Pássaros é uma obra coreográfica que transita por vários processos de descobertas, desde o comportamento social na investigação das diferenças individuais, como na importância da coletividade na construção narrativa de um território. Uma obra inspirada no movimento da migração dos pássaros e baseada na trajetória de espécies que compartilham rotas de voo para o enfrentamento de climas adversos, ameaça de predadores e que juntos buscam melhores condições de sobrevivência. A relação das revoadas e a convivência de diferentes espécies é uma reflexão sobre a sociedade e seus diversos conflitos como forma de compreender a coletividade humana.”
Aqui se encontra sintetizada a ideia de desafiar espaços, agregar diferenças, abraçar potências. Todavia, sabemos que nem sempre a natureza é gentil com corpos diversos; nem todas as espécies amparam os que dela fazem parte, mas apresentam singularidades: há disputas por poder, território, força, procriação, alimento. Mas há fenômenos de coletividade, como nos ciclos migratórios de diversas espécies de aves. Há, também, os mais diversos ciclos migratórios na humanidade; no caso desta espécie, porém, geralmente por necessidade de sobrevivência, fuga a opressões e perseguições, guerras, crises climáticas. Somos migrantes, somos Severinos: como nos apresenta João Cabral de Melo Neto em seu poema dramático Morte e Vida Severina: um auto de Natal pernambucano, que inclusive foi base para a criação, em 2022, do Estudo nº1: Morte e Vida do Grupo Magiluth (aqui de Recife), uma reflexão potente sobre as migrações humanas e as violências que as cercam.
Voltando ao trabalho do Grupo Movidos, vemos uma cena em palco amplo, com cenário mínimo: uma arena de folhas secas em um grande círculo delimita um espaço no palco e uma estrutura em palha de corda no alto, ao lado direito, parece indicar algo entre um ninho e a ideia da nuvem presente no título do trabalho (nuvem que será também recorrentemente “desenhada” na movimentação coreográfica). A iluminação busca dialogar com o movimento dos bailarinos e criar climas nas células dramáticas e nas partituras de movimentos apresentadas.
Musicalmente, a trilha alterna-se em duas vertentes: ora é mais mimética na alusão literal a sons de pássaros; chuvas e trovoadas; tiros (há uma sequência dramática alusiva a eles); ora é mais abstrata ou invoca atmosferas mais ternas para as coreografias de pas-de-deux (acontecem ao menos duas ou três sequências de duetos, entre corpos de bailarinos cadeirantes e não-cadeirantes), enquanto o trio restante do elenco se posiciona mais atrás ou na lateral, saindo do foco da cena. Aliás, um recurso recorrente para marcar o que a sinopse assinala sobre o trabalho, é que as partituras corporais são por vezes repetitivas e insistem em alusões diretas aos movimentos dos braços como asas, aos troncos que impulsionam os corpos para a ideia de um voo; aos conflitos por individualidades e disputas oscilando com situações de amparo e busca da força na coletividade.
Do ponto de vista dramatúrgico, o trabalho aposta na circularidade, na repetição e na soma de partituras corporais, em movimentos que vão se sobrepondo para dar a ideia de ciclos e de alternâncias entre ambientes, entre estações do ano (sons de chuva, luzes solares, opacidades) e desenha encontros e desencontros, disputas e negociações, parcerias e apoios entre os corpos em cena. Parece haver certo descompasso quando os movimentos são muito alusivos mimeticamente às aves e, em outro extremo, os corpos se humanizam e algumas performances parecem até aludir a repertórios de danças de rua ou capoeira, com giros e saltos, em plano médio e alto e no chão.
Um detalhe que não nos passou despercebido é que, na noite em que é apresentado um trabalho como este, cujo foco incontornável aponta para a acessibilidade e a quebra de barreiras atitudinais, no Teatro Luiz Mendonça não havia intérpretes de Libras (apesar de haver pessoas surdas na plateia) e, ainda mais, assinalamos que a estrutura deste equipamento público deixa muito a desejar no quesito acessibilidade: o bailarino João Paulo Lopes Barbosa, o John Lopes, licenciando em dança pela UFPE (que já dançou, inclusive, no palco deste mesmo teatro em Gala, montagem realizada na edição de 2023 do Feteag – Festival de Teatro do Agreste e presença frequente como público) estava lá para assistir ao espetáculo e, como não há espaço reservado para cadeirantes na plateia, nem rampas de acesso, John teve que deixar sua cadeira próxima ao placo e subir para acessar uma cadeira da plateia, se deslocando pelo chão.
Fica, portanto, mais que evidente o que grita nessa trajetória e na bandeira do grupo Movidos, em sintonia com o GiraDança e com o trabalho contínuo de artistas como Anderson Leão: ainda falta muito para termos uma sociedade que não segrega, que não força migrações violentas. Para além da pura e simples discussão sobre conceitos estéticos, paradigmas de suposta excelência em dança ou especificidades desta linguagem, o trabalho de artistas como os do Grupo Movidos é essencial para alargar fronteiras do fazer artístico e da própria sociedade. Não se trata, apenas, de militância, mas de cidadania e ampliação de concepções éticas/estéticas.
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06/10/2024 @ 07:10
A sua capacidade de simplificar temas difíceis é admirável e torna o texto acessível para diferentes públicos.
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06/10/2024 @ 11:08
Parabéns, artigo muito bem escrito.
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Gosto da forma como você explora diferentes facetas do tema, tornando o artigo mais completo e interessante.
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06/10/2024 @ 13:00
Reflexão interessante, obrigada por compartilhar.