O teatro segundo Agrinez Melo
No coração da cidade do Recife, no tradicional bairro da Boa Vista, vive e pulsa um teatro-roda-terreiro. Lá, Agrinez Melo investiga uma cena que não se convenciona – ou, sendo mais preciso, que se convenciona a partir de outros códigos e outros corpos, que não os brancos, europeus. Agrinez Melo poderia muito bem pesquisar sozinha, mas, felizmente, suas poéticas carregam outros fundamentos. Ela é de uma linhagem de filhas do vento, entende que seu corpo, essa casa que dança, é, na verdade, uma vastidão povoada de tempos. Assim, do encontro, nasce “Aldeias”, uma lindeza costurada por uma sabedoria ancestral que a Paó Produção & Comunicação em parceria com a Doceagri, acham por bem chamar de espetáculo, mas que poderia ser batizada de teimosia da insistência.
“Aldeias” carrega a força e a delicadeza do que é puro. O que é dado a ver ao público é, simplesmente, um tanto de verdade. Claro, há uma camada de representação, sim, mas, apenas muito pontualmente, o elenco transita por uma composição interessada pela construção artificial de um outro. Em “Aldeias”, os atuadores – músicos, dançarinos e atores – são eles e suas memórias, aquelas mais recentes e outras tantas, muitas, que vêm de longe, ancestrais. Sempre que a encenação se coloca a serviço de uma interpretação em que os artistas se expõem como eles mesmos, com suas alegrias e suas dores, “Aldeias” explode. O teatro de Agrinez Melo não é preso a um mimetismo da ordem do como se fosse, é um teatro genuíno, que é o que é.
Logo em sua primeira cena, a montagem deixa claro essa chave de criação. Ester Soares, sozinha, é ela e todas as mulheres do mundo, ao tempo que se veste de Rainha da Encruzilhada. A Pomba Gira de “Aldeias” sai do panteão e se espraia pela vida. A Pomba Gira é Ester Soares, ao tempo que Ester Soares é a Pomba Gira do culto e dos pontos, entoados com maestria, mas também é a mulher açoitada por ser mulher, a mulher de quem a sociedade tem medo, a mulher, porém, que não sofre do proibido e sabe que, sem ela, não haveria de existir alegria nem revolução. “Aldeias” arrebata pelo batuque, pelo ritmo, pelo movimento, mas, sobretudo, pela capacidade de provocar temas contemporâneos. A ancestralidade de “Aldeias” é absolutamente presente.
No teatro-roda-terreiro de Agrinez Melo cabe tudo. Questões ligadas ao universo LGBTQIAP+, por exemplo, demarcam seu espaço na medida em que se conectam com outras exclusões e outras censuras. A exclusão e a censura ao povo preto, a exclusão e a censura à mulher, a exclusão e a censura às religiões de matriz africana, a exclusão e a censura, enfim. “Aldeias”, no entanto, está longe de ser uma arena de debates. Definitivamente, não é uma peça didática. A dinâmica é mais da ordem do compartilhamento do vivido. O público é colocado quase que diante de um segredo. “Aldeias” tem, a um só tempo, a força do coletivo e a força da intimidade.
Experimentado desde 2019, “Aldeias” vem sendo inventado e reinventado ao sabor das trocas formativas desenvolvidas por Agrinez Melo na lida cotidiana dos 20 anos de atuação do Grupo O Poste Soluções Luminosas, formado por artistas negros interessados pelo resgate das culturas afro-indígenas no Recife. Com isso, “Aldeias” tem uma partitura que é aberta à renovação, tem uma trama porosa e acolhedora, que sempre pode receber uma nova cena e um novo ator. O músico Beto Xambá ganhou texto falado na sessão do último dia 27. A estreia, do modo como se deu, só é possível porque, no jogo jogado pelo elenco de “Aldeias”, não há espaço para individualidades. A ancestralidade é coletiva. Quando fala de si, Beto Xambá está falando de todos, está falando do mundo, assim como Ester Soares e Jorge Féo e Jully e todo o elenco também o fazem.
“Aldeias” é uma alegria compartilhada, uma festa com direito a banho de cheiro e bombom. É um trabalho suado, poderoso, que tem uma pesquisa muito consistente e pode e deve seguir reverberando e compartilhando seus resultados. “Aldeias” é um encontro muito desafiador para dentro e para fora dos limites de seu intenso e fértil teatro-roda-terreiro. Enquanto se conecta com os seus de agora e com os seus de sempre, Agrinez Melo cria uma experiência se não nova, inovadora, que só é possível, num revisar de convenções. Agrinez Melo questiona para ela, para seus atuadores e para os seus públicos o que é teatro, como se faz teatro e como se assiste teatro. “Aldeias” não fecha questão, não conclui nada, não traz resposta, mas abre veredas e desperta desejos. Sim, outros teatros são possíveis.
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03/06/2024 @ 08:45
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29/06/2024 @ 05:43
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02/10/2024 @ 11:06
Um bom ponto de partida para estudar o tema.
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06/10/2024 @ 13:01
Reflexão interessante, obrigada por compartilhar.