Palhaçaria comovente de Santa Catarina introduz as crianças aos temas da acessibilidade, inclusão e capacitismo
Estamos apenas no começo de uma longa jornada de espetáculos selecionados para a programação 2024 do Palco Giratório em Recife, uma iniciativa do Sesc Pernambuco, e já elogio com muito empenho a diversidade de atrações que vi até agora. A curadoria está de parabéns. Vamos a mais um. Na tarde de sábado (18), no Teatro Marco Camarotti, o público recifense pôde ver um espetáculo para crianças, vindo de Santa Catarina, sobre acessibilidade, inclusão e capacitismo. Reparem que maravilha incluir esses temas no festival. E, sobretudo, com censura livre, para que desde cedo as crianças vejam essas questões com naturalidade e abrangência. Sem preconceitos, sem medo de tocar no assunto, sem escamotear as diferenças.
O nome do espetáculo, que fala dos dois pés de uma palhaça, é ‘Circo de Los Pies’ – e vem da cidade de Canelinha (desculpem, mas parece piada pronta). Quem esteve lá vendo em ação a La Luna Cia. de Teatro (criada em 2016) presenciou uma grande carga de emoção trocada entre artistas e plateia. Foi lindo ver o teatro funcionando em toda a sua potência interativa, chegando nas crianças e nos adultos com a mesma intensidade. Impossível ficar indiferente a tanto acerto na abordagem de um assunto delicado. Era a deficiência física sendo mostrada de forma direta, sem disfarces, sem pudores, sem hipocrisias, sem dourar pílulas.
Pezinho e Pezão
Emeli Barossi, que atua e criou o espetáculo, nasceu com hemimelia fibular, uma formação congênita na perna direita, que é menor e mais fina do que a esquerda, o mesmo ocorrendo com os pés. Seu pé direito tem apenas quatro dedos. Ela é a palhaça Asmeline, que resolveu transformar seus dois pés diferentes em dois personagens antagônicos, o Pezinho número 30 e o Pezão número 35. E, assim, um circo inteiro cabe no seu corpo. A ideia é brilhante e muito bem realizada.
Como ela mesma diz à plateia, é um espetáculo feito para diminuir a gravidade das coisas, para afrontar os padrões que nos limitam. Um circo de desvios. Um diálogo com as deformidades de todos nós. Quanta coragem, quanta bravura. Fico imaginando o quanto esse espetáculo contribui para que PCDs, sobretudo as crianças, olhem com mais naturalidade para suas deficiências, aceitem seus corpos diferentes com mais leveza e menos tensão.
Assimetria sem fricotes
É muito comovente ver o que Emeli/Asmeline faz com seu corpo, tão desenvolto, tão preparado. À certa altura, conseguimos achar de verdade que há três “seres” independentes no palco: ela, Pezinho e Pezão, três personagens, ainda que num corpo só. E ela até brinca com isso: “Calma, gente, sou eu mesma que faço tudo, tá?” O público cai na gargalhada. O jeito leve e bem resolvido como a atriz fala de seu corpo faz a plateia se permitir rir e chorar, sem censura, sem fricotes. É, de fato, um grande achado dramatúrgico sobre a naturalização da diversidade, seja ela qual for. No caso dessa palhaça, é a dramaturgia da assimetria. Que feliz ideia. Asmeline nos es-mociona.
Há cenas lindas, muito plásticas e convincentes. Como o momento em que a palhaça assume um tom maternal e consegue que os dois pés façam as pazes – como uma mãe lidando com dois filhos briguentos. Ou quando ela vai finalmente pôr os pés no chão. Com a ajuda do desenho da iluminação, vemos um verdadeiro bailado rasteiro ao solo, entre tombos e balanços, com um cuidado coreográfico incrível. Pés que saltam as lógicas. E como é pungente ver Pezão ensinando Pezinho a calçar um sapato. Só acho delicada a brincadeira que ela faz quando os pés querem se separar, indo um para cada lado, porque ela cita “esquerda e direita” – e neste País polarizado, é muito complicado brincar com isso. Melhor evitar. Ou tomar partido de um dos lados, o que ela não faz.
Libras e off tornam tudo inclusivo
Além da maravilha de falar de capacitismo com as crianças, ‘Circo de Los Pies’ tem outro atrativo inclusivo importantíssimo. É um espetáculo em que a audiodescrição e a língua de sinais são incorporadas à dramaturgia. Não são recursos apartados do espetáculo. Uma voz-guia em off (muito boa) vai descrevendo e contando tudo o que se passa no palco. E a atriz também fala por língua de sinais, mesmo tendo uma profissional fazendo isso tão bem a seu lado. Essa intérprete de libras e o narrador em off viram também coadjuvantes do espetáculo, porque interagem e conversam o tempo todo com a palhaça.
Isso faz a dramaturgia ser totalmente única e especial – e ter um ritmo mais lento, mais cuidadoso, porque excessivamente descritivo. Num espetáculo que dura 45 minutos, dedica-se, por exemplo. 10 minutos para descrever figurino e cenário para a plateia cega e surda que porventura possa comparecer. Fazem isso com muita brincadeira, muito humor, muita esperteza, mas seriam 10 minutos descartados e desnecessários se o espetáculo não tivesse essa proposta de acessibilidade. O mundo felizmente está mudando para melhor e os espetáculos passarão por mudanças inevitáveis como essa.
A solução para Asmeline aceitar sua condição, superar seus medos, encarar de vez seus pés assimétricos e seu andar todo cambaleante surge no comovente final imaginado pelo grupo, e que não vou obviamente contar aqui. Mas tem a ver com o orgulho que a personagem passa a sentir de seu ofício, de sua arte. Ou seja, ao final, somos surpreendidos por mais um tema que ficou latente durante todo o espetáculo e explode com muita força no epílogo: a valorização da arte dos palhaços. Que grande e diverso espetáculo, cheio de camadas! Vida longa.
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