Procedimento #6: expandindo a caixinha de música, a dança como espelho multiplicador de memórias
A plateia adentra o teatro e um palco frontal a espera, com uma tela branca como “cenário”, além de uma espécie de biombo, translúcido, quadrado – ao lado esquerdo de quem entra – e a bailarina Jackeline Mourão já está em cena, com um figurino branco (um maiô com faixas sobre seu corpo) e um tênis branco, cabelo preso e com três espécies de esferas, para cima, para trás e para baixo. Também ao lado esquerdo de quem entra, está uma mesa com equipamento de vídeo e som, na qual está sentado o parceiro de cena e criação deste trabalho, Reginaldo Borges. Tudo começa com algumas caminhadas lentas, mas em passos vigorosos. Jackeline nem devia saber que lá estava eu para escrever uma crítica sobre o espetáculo para este Festival Palco Giratório em Recife, mas me encarou por alguns tantos segundos e isso já me foi fisgando pelo olhar, pela expressão, pela profunda consciência de presença cênica dela.
O aparato tecnológico de Reginaldo já está em ação: as câmeras captam a plateia, que se vê na tela branca ao fundo do palco. Vai se montando a atmosfera, sem pressa, em uma dilatação do tempo que se instaura. São alguns minutos, mas quem poderia duvidar que eles se tornam expandidos a ponto de quase inquietarem os corpos sentados à espera do que se irá desenrolar na cena, no palco? Jackeline se move, iniciando pequenas células das partituras corporais que irá desenvolver ao longo do trabalho e se desloca até entrar no biombo já mencionado. O diálogo é constante e pleno entre luz, sonoridade, projeções. Jackeline e Reginaldo dançam juntos em um corpo que expande o orgânico e o tecnológico como próteses amalgamadas e fundidas num estranho ente uno e, também, coletivo.
Começam a brotar as perguntas: o que pode a dança como linguagem e como ela se vale dos recursos próprios e das pontes entre seu repertório de ferramentas e as conexões com outras linguagens? A palavra Procedimento (que dá título ao trabalho, seguida do #6), se a buscamos no dicionário mais comum, trará as acepções de 1. “maneira de agir, modo de proceder, de portar(-se); conduta, comportamento e 2. Modo de fazer (algo); técnica, processo, método. (conferir o Dicio – dicionário online de português). A bailarina e seu parceiro de criação e palco, que fazem dançar luzes, projeções e sons, vão somando e decupando camadas, como método, como processo. O som marca o ruído (aqui no nordeste a gente diria mesmo “chiado”) que lembra a agulha do disco de vinil quando se acabou um lado da “bolacha” e a agulha fica girando sem sulco de som: fica ali apenas rodando, rodando e emitindo seu shhhhhh, tchiiiiiii e equivalentes. Tudo é sensorial e em camadas neste trabalho, tudo vai se somando e parece que a matemática pura, como ciência natural mesmo, nos repete a lição de que um mais um pode ser um mesmo: música é ruído e é silêncio e é sucessão eletrônica de ritmos e compassos; dois braços, porém, também podem ser oito ou dez se recombinados e multiplicados em projeção: Jackeline dança com vários duplos de si mesma, nas projeções. Uma mais uma se faz uma e muitas de si mesma.
O método a partir do qual se acionam os dispositivos do trabalho passam pela acumulação: seja dos passos pelo palco, da simulação da corrida, das torções de coluna e dos planos de corpo e movimento ou das qualidades de movimento que Jackeline aciona (fluxo, espaço, peso se somam para, numa espécie de metrônomo, marcar e dimensionar o tempo, fracioná-lo e multiplicá-lo). Torções de braços, pescoço, pernas e coluna; por vezes o corpo da bailarina é escultura fixa; depois desafia a gravidade e rotaciona, se desloca e equilibra em “queda de rim” (assim se chama a sustentação do corpo sobre os braços ao quase rés do chão) ou se pòe de ponta-cabeça, elevada e sustentada pelos braços também. Já Reginaldo interage com os recursos de que lança mão nos aparatos de vídeo, som, imagem, projeção e luz, também, com um método de acumulação e expansão. Aqui se trata do tempo novamente: decupado, revelando suas entranhas na produção de memórias do corpo, da experiência, da movência, das imagens que nos vão habitando a retina.
Por vezes, lembrei de Jacques Tati (ator, diretor francês, que trabalhava uma corporeidade da pantomima), nas partituras de corpo de Jackeline, lentamente construindo posturas, depois dançando com gestos do cotidiano, valendo-se dos braços, mas também de coluna e articulações e ossos e pele e expressão facial. Depois, vêm as movências movediças pelo chão (exploram-se com absoluta consciência e domínio todos os planos – baixo, médio e alto – e todos os vãos do palco); um adereço de figurino que a certa altura a bailarina enverga e traz à cena (um blazer branco) é flâmula, é ferramenta para borrar o gesto da dança e a interação entre música, projeções de pontos pretos na tela atrás com os quais Jackeline dança como se fosse ela um ímã e um dínamo dispersor; depois surgem bolas vermelhas que se agregam como manchas, como coágulos, e associo o que vejo com Yayoi Kusama (nascida em 1929, no Japão; artista visual, performer e escritora japonesa – entre várias outras linguagens) e o conjunto de sua obra visual, sobretudo sua obsessão por pontos e bolas. Penso e sinto em sinergia, tudo que organicamente se funde neste procedimento e a plateia se dissolve e se amalgama na cena.
Vindos de um Brasil que o Brasil em geral desconhece, da cidade de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, Jackeline Mourão (que tem formação em educação física – o gestual deste trabalho nos dá algo deste DNA, sim, na corrida, no tônus muscular – e pós-graduação em Linguagem e poética da dança) e Reginaldo Borges (produtor audiovisual, fotógrafo e também artista da dança) nos brindam com uma experiência sensorial múltipla, sensível, poética e que em larga medida acolhe uma plateia nem sempre afeita às possibilidades tantas da dança contemporânea em sua estruturação dramatúrgica que não obedece a uma lógica de enredo linear, a uma racionalidade cartesiana, mas expande corpo, gestual, imaginário, e multiplica muitas Jackelines na tela e as faz dançarem consigo mesma em um solo de múltiplas ela-mesma como coletivo de si, proliferando o gesto efêmero e isolado do corpo (parado e em movência), embaralhando passado e futuro numa presentificação que engendra uma paisagem sonora, aciona memórias sensoriais e se converte em puro espaço lúdico: um largo pasto para os sentidos.
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