Um infantil à moda antiga: respeitemos os veteranos do teatro pernambucano
Todos nós sabemos que há pessoas ainda fazendo teatro no Brasil como se fazia nos séculos passados, não abrindo mão do que sempre fizeram, do jeito que sempre fizeram, apoiados no sucesso que sempre tiveram, ainda que tudo nos pareça anacrônico e ultrapassado. É o que eles sabem fazer. Antes de qualquer julgamento, trajetórias precisam ser respeitadas, e não simplesmente negadas e rechaçadas em nome de uma contemporaneidade que um dia também será coisa do passado. Todo mundo adora dizer que o Brasil não tem memória, pois então respeitemos os veteranos do teatro que ainda seguem em atividade, pelo que eles já trilharam em suas trajetórias, pelos caminhos que eles abriram para que as renovações pudessem ter sido feitas.
É o caso de José Francisco Filho, diretor geral de Seu Sol, Dona Lua, infantil apresentado na tarde de quinta-feira (23), no Teatro Marco Camarotti, como parte do festival Palco Giratório 2024. Um evento como esse do Sesc Pernambuco precisa apontar caminhos e apostar em ousadias, mais do que dar espaço para linguagens antigas, ainda que consagradas. Questiono a inclusão dessa peça na programação. Seu Sol, Dona Lua é teatro que representa uma era e que reproduz modelos já superados como linguagem e dramaturgia.
Mas seu realizador, o professor José Francisco Filho, com 43 anos de atuação e mais de 30 espetáculos no currículo, tem seu valor histórico para o cenário teatral pernambucano – e não deixa de ser louvável termos a chance de vê-lo em ação, acreditando piamente no que faz. O sonho de cada um é o sonho de cada um. Sorte dele que teve o aval dos curadores do Palco Giratório, para que sua peça feita nos moldes dos anos 1980 ainda consiga visibilidade para a geração de hoje.
Mas é preciso delicadamente deixar registrado que é um espetáculo datado, praticado de um jeito que o teatro de hoje já enxerga como estereotipado e reducionista. Temos de ver Seu Sol, Dona Lua com olhos de condescendência histórica, com a disposição generosa de entender que houve um tempo em que se acreditava nesse tipo de espetáculo como se fosse o melhor jeito de falar com as crianças no teatro.
Um aspecto que acontece muito ainda hoje no teatro para crianças, no Brasil todo, e que vem desde essa época inaugural a que me refiro, é a participação da plateia. Atores “provocam” as crianças com perguntas diretas e fáceis, elas respondem, todas juntas, e, a partir desse estímulo vindo do ator, passam o resto da peça gritando, falando alto, querendo conversar com os personagens. Os diretores – esses diretores que são dessa escola obsoleta de teatro – ficam plenamente satisfeitos com o alto nível de participação da plateia ao seu espetáculo. “Vocês viram como as crianças gostaram e como participaram tanto?” – eles se vangloriam. Isso acontece demais até hoje. Parabéns.
Cada um que acredite no que quiser, mas, para mim, que prezo pelo teatro de qualidade, isso é ilusão de participação. Porque foi forçado. Foi um recurso fácil. E, além do mais, o ator despreparado perde a mão com a plateia. No século 21, já há espetáculos ditos infantis em que essa participação acontece de forma mais inteligente, menos óbvia, mais espontânea, mais bem pensada pelo dramaturgo. Sem contar que, muitas e muitas e muitas vezes, o silêncio de uma criança na plateia é um indicativo maior de que está plenamente “dentro” do espetáculo, uma prova bem mais clara de que está gostando e “participando”, do que se estivesse gritando e respondendo às perguntas do atores.
Quero transcrever aqui algumas frases, talvez não literalmente (por falha de memória), que ouvi em ‘Seu Sol, Dona Lua’, cujo texto na ficha técnica é assinado por Marcos Sá. Vejam:
“Estou na fossa.”
“Mais triste do que ter um sorriso triste é não sorrir.”
“Ninguém pode ser feliz sem amor.”
“Você vai encontrar a razão de ser feliz.”
“No fundo, sempre vale a pena amar.”
“Mas vocês pensam que é fácil amar?”
“O amor é a base de tudo.”
“Liberdade de expressão é o estado do amor.”
“As cicatrizes que estão riscadas para sempre na minha alma e que se chamam solidão.”
“Quando as pessoas se amam têm muito a enfrentar.”
“Eu sou aquele amante à moda antiga.”
Essa última frase é sintomática e reveladora sobre ‘Seu Sol, Dona Lua’. Uma peça à moda antiga. Tenho certeza de que, ao ler esse meu texto e, sobretudo as frases que compilei aqui, muita gente vai querer ir correndo ver a peça em sua próxima récita, levar filhos e filhas, netos e netas. É um tipo de público que existe. A tal propalada diversidade não é isso? Eu, crítico há mais de 30 anos, aprendi a gostar e valorizar outro tipo de espetáculo – e a apenas respeitar esses que têm seu valor arqueológico.
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