“Um minuto para dizer que te amo” é a prova viva de que há certas dores que só se entendem no coletivo
“Um minuto para dizer que te amo” é um espetáculo comovente. Criação do Matraca Grupo de Teatro, de Jaboatão dos Guararapes, a montagem encanta, enquanto assusta, ou assusta, enquanto encanta, mesmo quando envereda por uma composição mais caricata. A maior parte do tempo, o que predomina é um tom equilibrado, respeitoso, com uma das dores mais agudas de que se tem registro. “Um minuto para dizer que te amo” flagra o medo de uma família de ser engolida pelo esquecimento. Pai, mãe e filho sofrem ao se dar conta de que suas memórias já não são assim tão confiáveis, de que o ontem já não lhes diz mais absolutamente nada. O tempo deles é outro. É um tempo presente e aflito, angustiado. O tempo deles é o de quem tem a consciência de que se morre a cada memória borrada ou esquecida.
Falar do Mal de Alzheimer no teatro é um desafio à parte. O tema é dos mais espinhosos onde quer que seja enfrentado, mas, no palco, com a ação funcionando de forma condensada, tudo se revela mais complexo na medida em que o caráter processual da demência fica um tanto inviável de se representar. Em “Um minuto para dizer que te amo”, por exemplo, o público é colocado diante de um conjunto de situações provocadas por um estágio avançado da doença. Com isso, tudo parece ainda mais sensível, mais à flor da pele. O texto de Luiz de Lima Navarro, porém, não tem propriamente um tratamento clínico. “Um minuto para dizer que te amo” não discute o Mal de Alzheimer, ele mostra o sofrimento de viver e conviver com o Mal de Alzheimer.
Nesse sentido, a encenação de Rudimar Constâncio encontra soluções muito interessantes. O espetáculo constrói imagens bastante funcionais para transitar do lembrado ao esquecido. Rudimar turva o olhar do público, concentrado um bom número de cenas sob uma espécie de véu do esquecimento. A cenografia e a indumentária de Séphora Silva e a iluminação de João Guilherme de Paula são decisivos para organizar uma composição que, embora realista, está mais próxima da alegoria do sonho que do registro documental. É lindo ver Dona Guida, personagem de Célia Regina Rodrigues, voar e sentir a brisa no rosto só com um movimento de luz. É lindo ver o pai, vivido por Carlos Lira, criança em plena velhice, fazer de um simples Mané Gostoso seu menino Lúcio.
Muito equilibrado, o elenco, formado ainda por Douglas Duan e Marinho Falcão, que fazem juntos o filho herdeiro do Mal de Alzheimer, e Vanise Souza, a zelosa cuidadora Amélia, cruza diferentes inflexões de atuação. A exceção fica por conta de Lucas Ferr, preso numa camada mais lírica do espetáculo. Rudimar Constâncio explora bem seus atores, também muito habilidosos enquanto cantores. Além dos números musicados ao estilo do canto coral, há cenas muito bonitas no jogo de Vanise Souza e Célia Regina Rodrigues e ainda no jogo protagonizado por Douglas Duan e Marinho Falcão. “Um minuto para dizer que te amo” aciona performances de interpretação que provocam a estilização do realismo. Vanise e Célia contracenam de costas uma para a outra, enquanto Douglas e Falcão alinham tempos do personagem que compartilham num longo trecho de texto falado em sincronia, por exemplo.
Rico em detalhes, exuberante nos recursos que dispõe, “Um minuto para dizer que te amo” prende a atenção, porém, com aquilo que tem de mais simples e sofisticado: o trabalho de ator. Célia Regina Rodrigues e Carlos Lira, em particular, são desafiados com um grau de dificuldade mais acentuado. São eles que dão cara ao Alzheimer, que tornam visível a dor do esquecimento, ao tempo em que são demandados a envelhecer diante do público. Fico pensando se não seria o caso de Rudimar Constâncio ter recorrido a atores ainda mais experientes, o que tem de sobra no teatro Pernambuco. Essa outra opção, entretanto, seria tão problemática quanto, diante do risco da caricatura que Célia e Lira caem, considerando que os atores mais velhos teriam que rejuvenescer em cena.
A verdade, no entanto, é que “Um minuto para dizer que te amo” não deixa margem para tantos questionamentos assim. Enquanto se é dado a ver a saga de Lúcio e seus pais, o tema acaba por se sobrepor. Como consequência principal desse movimento, fica evidente que a presença da plateia passa a compor o espetáculo. Não é que se sofra à distância, sofremos todos, juntos. Dona Guida e seu marido são um pouco mãe, um pouco pai, um pouco avó, um pouco avô, um pouco vizinha, um pouco vizinho da grande maioria dos espectadores. Assim como, não se pode fugir à possibilidade real de sermos, também, um pouco Lúcio. É tátil a afinidade que a montagem estabelece com sua audiência, enfim. “Um minuto para dizer que te amo” é um belíssimo encontro, desses que só o teatro consegue produzir. Um encontro com a dor do outro e, sobretudo, com a nossa própria dor.
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