Vigor, conceito e tributo unidos no maracatu atômico da diversidade
Uma tarde de muita energia, euforia, diversidade, fisicalidade e vigor marcou a programação do Palco Giratório 2024, no Recife, com a apresentação de ‘Circo Science – Do Mangue ao Picadeiro’, pela Trupe Circus, da Escola Pernambucana de Circo, a EPC. Foi recado, visse?
Selecionar essa atração foi de extrema relevância, pois o evento não era realizado na cidade havia dez anos. Felizmente seus curadores tiveram a sensibilidade de incluir nessa volta ao calendário da cidade um espetáculo que é extremamente representativo de Recife, não só por render tributo a uma saudosa personalidade local que marcou a história recente da música brasileira e mundial, mas por botar no palco os integrantes da EPC, uma instituição sediada do bairro da Macaxeira, na Zona Norte, que preza mais do que tudo pelos valores da cultura de periferia. Tudo isso junto deu à sessão, no Teatro Luiz Mendonça, um emocionante tom de grandiloquência local, que a cidade merecia desde o forçado apagão sanitário da pandemia.
O universo manguebeat de Chico Science (1966-1997) aliado ao mundo do circo. Pronto. Isso é de uma felicidade temática, estética e conceitual de se tirar o chapéu. Fisicalidade espetaculosa lado a lado com a veemência politizada. Com a ajuda marcante de imagens no telão e uma desafiadora estrutura cenográfica de metal, a vida nos manguezais pernambucanos, ignorados historicamente pela elite, re(pulsou) em nós. E tudo ao som único e impactante de um ídolo revolucionário de ritmos e propagador de consciências críticas, da lama ao caos.
O espetáculo é desses que rompem todo tipo de fronteiras. Não é isso nem aquilo. Não aceita rótulos, por natureza de sua criação múltipla e abrangente. Não haverá curriolas de corporativistas academicistas nem panelinhas de pragmáticos resenhistas de almanaque capazes de escolher uma só e única gavetinha para dobrar e guardar a lona desse “Circo Science”. Circo contemporâneo? Mais. Teatro-dança? Bem mais. Performance? Muito mais. Tem audiovisual, tem linguagem de sombras, tem coreografias, tem moda, tem artes plásticas. Um maracatu atômico da diversidade? Um balé atrevido de equilibristas, malabaristas e contorcionistas? Um picadeiro feliz para o brilho de identidades de gêneros? Criatura, acredite, pois é tudo isso. Tudinho. Junto e misturado. É recado! Recado e babado, visse? Eita trupe que sabe torar, essa Trupe Circus. Te contei, não?
É uma gente de atitude. Um povo do bem. Pisa firme e diz a que veio. Olha lá. A diva vem posuda, carregada feito rainha, para a boca de cena, receber os aplausos depois de bater cabelo, amarrada pelo coque, a poderosa. E olha aquele outro ali. O bonito encara, vem na pose, depois pula, se estica, transpira “a corpa” feito ginasta-bofe, arrisca estatelar os ossos na hora da saída do número fatal… e ainda rebola uma sensualidade de cair o queixo na cara do público. Isso é a Trupe Circus. Essa vida pulsante, essa atitude na veia, essa firmeza no jeito de corpo. Tudo com a bênção do Chico S. O masculino ambíguo e o feminino empoderado. E daí? Vai encarar? O orgulho estampado no rosto da drag, o acinte saudável, a ousadia se derramando toda. Não falei que era babado? E é recado, visse? Os nomes deles e delas: Ítalo Feitosa, Maria Karolaine, Gabriel Marques, Bruno Luna, João Fernando e João Vítor. São reis e rainhas do pedaço. Dominam tudo, todos, todas, todes e o que mais vier nessa dança atrevida de pronomes. Eita trupe que sabe torar.
E tem a babadeira-mor Fátima Pontes, na coordenação da escola, na produção da peça, na assistência de direção e na dramaturgia. Tá bom pra você, baby? Que figura luminosa! E tem a direção mega arrasadora de Ítalo Feitosa, que também está em cena, mas comanda o belo terreiro apocalíptico com visão de raio X. E tem, de novo neste Palco Giratório, os figurinos sempre eloquentes de mestre Marcondes Lima, aqui ornando de vivacidade cada curva do sexteto-bafo. E lá vêm os remixes de torar da gloriosa Vibra DJ e sua equipe de feras. E toda a narrativa contida no projeto de iluminação de Felipe Braccialli, outro versátil da ficha, que também preparou o elenco, tomou papuda? E, ‘last, but not least’, o acerto absoluto da videocenografia de Gabriel Furtado. Que gente boa, Pernambuco, que gente boa. Não disse que era babado? Babado e recado!
E pensar que a plateia estava cheia de adolescentes e de crianças! Que coisa mais linda e mágica foi essa tarde do Palco Giratório. É raro espetáculos que atraiam a juventude para o teatro. É raro. Foi dito e redito no Seminário Nacional que abalou a sede da Faculdade Senac Pernambuco, na semana passada. Mas Chico S. tem esse poder. E a Trupe Circus fez por merecer todo esse numeroso público imberbe com fome de plateia virgem. Esses jovens, como esquecerão o que viram? Aposto que foi transformador para tantos e tantas e tantes. Um circo todo estetizado visualmente, com cenas lindas, bem pensadas, bem coreografadas, bem iluminadas. Como esquecer? À frente deles, o que se passou foi um libertário desfile de múltiplas inimagináveis linguagens artísticas, que valem mais do que um ano inteiro da catequese escolar com seus currículos defasados. Que poder tem o teatro? E ainda aquela trupe intrépida de artistas/intérpretes/circenses empurrando a porta com garra, bradando posturas, empunhando coragens, discursando pelos poros do corpo, atiçando as vontades. Como os jovens e as crianças esquecerão do que viram, se o que eles viram foi espelho deles mesmos, seus desejos, suas lutas, suas possibilidades, sua vida toda que ainda está por vir? Ah, que poder tem o teatro.
As opiniões expressas nas resenhas publicadas neste blog são de responsabilidade exclusiva dos críticos que as assinam. O Sesc PE não se responsabiliza pelas opiniões, comentários ou avaliações feitas pelo autor, que são independentes e não refletem, necessariamente, a visão de nossa instituição.
02/06/2024 @ 09:23
You’reunstoppable
03/06/2024 @ 08:45
“Thank you for creating a space where motivation and gratitude thrive. Your posts are a breath of fresh air!”
02/10/2024 @ 10:37
A leitura foi extremamente enriquecedora, trazendo novos pontos de vista e informações valiosas sobre o tema.