“Yerma Atemporal” conjuga Lorca no presente e teatro no passado
A relação do teatro com o tempo é das mais bonitas e férteis. Mais que qualquer outra forma de expressão, o teatro tem o poder de tornar perene o efêmero, embaralhando ontens, hojes e amanhãs. Em cena, os dias não se contam como na vida, como na agonia de Yerma, criada por Federico García Lorca em 1934 e recriada por Simone Figueiredo quase 90 anos depois. Com direção da própria Simone em colaboração com Paulo de Pontes, o espetáculo “Yerma Atemporal” sublinha esse traço tão poderoso da linguagem teatral e aninha justamente aí sua potência e suas fragilidades.
Politicamente, o texto de Lorca enfrenta o tempo enquanto se recusa a caducar. Tudo o que acontece com Yerma e com Maria e com a Velha numa trama ambientada no início do século passado segue acontecendo agora com Aparecidas, Jualianas, Bárbaras e, infelizmente, com outras tantas mulheres. Há um feminino que permanece subjugado, controlado, organizado e censurado por um masculino que lhe impõe e lhe revoga direitos. Yerma teve poucos espaços de autonomia, foi casada à revelia pelo pai e vigiada por um marido que lhe negou seu maior sonho. “Yerma” é uma história de dor e violência. “Yerma Atemporal”, também.
“Yerma” é um clássico, como diria Italo Calvino, e Simone Figueiredo sabe disso. Os clássicos são obras que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, mais se revelam novos, inesperados e inéditos quando, enfim, os acessamos de fato. Os clássicos não são revisitados por dever ou por respeito, mas, sobretudo, por amor. Não falta paixão nem entrega ao elenco de “Yerma Atemporal”. A montagem é muito caprichada, o elenco muito afinado, uma indumentária e uma cenografia muito coerentes. É notório o empenho daquele coletivo diante da empreitada de conjugar Lorca no presente. O que falta a “Yerma Atemporal” é, essencialmente, unidade poética.
Enquanto a dramaturgia pulsa e aflige pela sua indigesta atualidade, as escolhas de Simone Figueiredo e Paulo de Pontes incomodam num sentido inverso. “Yerma Atemporal” é um espetáculo cenicamente datado. A direção é toda ela muito previsível. Os recursos adotados não dialogam em nada, em termos de linguagem, com as possiblidades da cena contemporânea. A sensação é que estamos diante de uma remontagem, no sentido de apuro e preciosismo da encenação com códigos que já não são tão relevantes. Fosse um outro texto, talvez isso não causasse tanto estranhamento. Lorca é novo demais para uma moldura tão antiquada.
Simone Figueiredo e Paulo de Pontes posicionam seus atores e músicos num terreno difícil de se firmar. A peça funciona infinitamente melhor quando se desprende de uma pretensão naturalista, mas esses momentos são muito raros. Com isso, há imagens lindas que acabam por se diluir diante de interpretações de viés cotidiano, simplório, realista. Simone Figueiredo e Paulo de Pontes conseguem criar um rebanho de ovelhas em cena, mas não conseguem compor uma situação de embriaguez para além da expectativa clichê. É possível extrair, sim, mais do elenco como um todo fora dessa orientação de composição mimética.
“Yerma Atemporal” é um trabalho que tem plenas condições de alinhar forma e conteúdo, mas escorrega. O que é dito ali fala mais alto, muito mais alto, do que o modo como é dito. O texto de Lorca, o que é dito, é sempre muito bem-vindo, a denúncia que carrega é ainda poderosa, mas o teatro, o modo como é dito, pode dar a ver esse drama numa composição mais presente, mais atual. “Yerma Atemporal” vale pelo encontro, de fato atemporal, mas sai cena sem uma conexão mais profunda com as Yermas e com o teatro de hoje. Esse fardo é passado demais para o público resolver sozinho.
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Paulo de Pontes
21/05/2024 @ 12:05
Entendi!
Grato pelas considerações!
Tudo é aprendizado e em construção!