Peça pernambucana requer ajustes, mas cativa pela sensibilidade de falar de autismo com teatro de objetos
É bom, muito bom, que na vasta programação de um festival teatral haja estreias nacionais de espetáculos, não só peças que já estão em temporadas regulares há algum tempo. A meu ver, isso dá viço à programação e prestígio para o grupo que vai estrear dentro de um evento tão reconhecido. Na tarde de terça-feira, dia 21, no Teatro Marco Camarotti, do Sesc Santo Amaro, estreou em Recife o infantojuvenil ‘Hélio – O Balão Que Não Consegue Voar’, atração local do dramaturgo e ator Cleyton Cabral. Foi a primeira apresentação – e a sala estava lotada, com cadeiras extras. E foi mais um abraço quente do público recifense ao bem-vindo Palco Giratório 2024, de volta a Pernambuco dez anos depois.
Na hora de avaliar um espetáculo que nunca tinha dado sua cara a tapa, é preciso ser um pouco condescendente. É o que penso como crítico – e sei que muitos não concordam comigo nesse particular. No Sudeste brasileiro, onde vivo, na época áurea dos jornais impressos, por exemplo, lá pelo século passado, críticos corriam no dia da estreia para que suas avaliações já estivessem no jornal do dia seguinte. Injusto avaliar em uma noite em que os atores ainda estão nervosos e a plateia comprometida, já que repleta de convidados e familiares. Espetáculos de teatro precisam de maturação, de récita após récita, porque as primeiras sessões podem demandar ajustes. O que se pensava que funcionaria, só pelos ensaios, muitas vezes não funciona.
Apertos na engrenagem ‘Hélio’ requer ajustes. Pronto, falei. Seu ritmo ainda está ralentado. É um digníssimo (e louvável) representante do chamado teatro de formas animadas com manipulação de objetos, e isso exige atuação detalhista, bem treinada. Não é o caso ainda. Falta óleo na engrenagem. As demoras no ritmo se dão, ao que parece, por falta de domínio pleno das mãos sobre os objetos-personagens, que não são poucos.
Mas, ao que tudo indica, o elenco vai chegar lá. O trio em cena, Cleyton Cabral (o autor), Fábio Caio e Luciana Barbosa (produtora), demonstra desembaraço, apresenta carisma, entrega verdade. Falta o diretor – Marcondes Lima – dar um aperto nos tempos, para que a história flua mais facilmente. Nos tempos atuais, em que – dizem – as pessoas querem tudo rapidamente, decretar que um espetáculo está moroso pode ser mal interpretado. Sou a favor de se demorar o tempo que for preciso. Sou a favor de que dramaturgias não se alterem só porque a geração Tik Tok isso e aquilo… Mas no caso de ‘Hélio’, agilizar vai avivar, vai potencializar, vai iluminar a trama mais ainda. O tempo dirá.
E, diga-se logo, é uma trama incrível. Não à toa o trabalho de Cleyton Cabral venceu o Prêmio Ariano Suassuna de Cultura Popular e Dramaturgia em 2019, na categoria animação. Numa loja de festas, vão nascendo balões e mais balões. Vemos os namoros, a gravidez, os nascimentos de balõezinhos novos. Vemos todos eles serem usados em festas, revéillon, piqueniques, passeios, aniversários, baladas. Até que nasce Hélio – e não voa. Não consegue. Só o que ele quer é admirar por horas e horas objetos que rodam, que giram: cata-ventos, ventiladores, móbiles e seu inseparável globo terrestre.
Um transtorno chamado TEA Hélio é um balão autista. Quanto ele cresce e vai para a escola, fica solitário em um canto, com um livro. Dói ver outros balões fazendo bullying com ele. Hélio tem o Transtorno do Espectro Autista (TEA) – o espetáculo não diz isso com todas as letras, mas, ainda que alguém não identifique esse tema, o balão que não voa é visto logo como uma criança com algum tipo de deficiência, e isso basta para a compreensão do enredo.
Sua mamãe (um balão vermelho em forma de coração) cuida dele com muita persistência. É um autêntico, puro e comovente “amor de mãe”. O balão-pai sai de cena, não sabe lidar – e isso é tão comum na vida real… Imagine sentir isso tudo na plateia, só com balões, sem texto falado. É maravilhoso, realmente uma ideia luminosa que nos arrebata. Produzir uma peça com esse tema tão necessário, alvo ainda de tanto preconceito e muita desinformação, é de se aplaudir de pé efusivamente, sobretudo porque não basta falar do tema: é preciso sensibilidade e delicadeza na abordagem. O espetáculo consegue. Parabéns ao Palco Giratório, que recrutou essa estreia.
Só é preciso tomar cuidado com mais alguns aspectos, um deles relacionado à sonoplastia criada por Marcelo Sena. Se a ideia é que crianças autistas também estejam na plateia, para tentar criar nelas uma empatia tão necessária na missão de que aprendam a se aceitar e a se compreender, é preciso urgentemente diminuir o volume da trilha. Autistas sairiam da sala logo nos primeiros minutos do espetáculo, por excesso de ‘barulho’.
E mesmo que o espetáculo não seja para eles, mas para uma sociedade que precisa entendê-los e decifrá-los, esse cuidado com a trilha sonora seria fundamental. Todos temos de aprender. Isso até já tem um nome bastante difundido: acessibilidade atitudinal. Pensar nos autistas (e nos neuro divergentes, de forma geral) e tomar atitudes a seu favor. Além da trilha, a bem-pensada cena em que o balãozinho sonha com criaturas voadoras tem uma iluminação linda (quem assina é Luciana Raposo, com efeitos visuais de Álcio Lins), mas que também seria rejeitada de imediato pela sensibilidade à luz de um autista. É luz de teatro de sombras, parecida com a estroboscópica. Melhor evitar, pois seria fatal.
Sinto uma pulsão quase irresistível de contar aqui a solução final encontrada para Hélio, que é balão, mas não consegue voar. Mas não farei isso. Só digo que é um desfecho bonito demais. Inteligente. Poético na medida certa. A cena precisa de acertos na luz e no ritmo, para ficar mais poética ainda, mas é de uma potência bárbara. Saímos da sala alegres e cheios de esperança, por ver que aquela criança-balão-deficiente achou seu jeito de ser feliz.
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06/10/2024 @ 13:34
Acredito que textos como este são essenciais para ampliar a discussão sobre temas tão relevantes e pouco abordados.